Sobre clássicos, tradição e o campo
comunicacional
Rafiza Varão1
Falar sobre clássicos e tradição, nos vários sentidos que as
diferentes formas de conhecimento nos oferecem, é nos colocarmos, imediatamente, numa frente de batalha entre um passado que se mostra
pela fresta de uma porta semicerrada, de dimensões cartapácias, e a
contemporaneidade que recolhe, pelas frestas da mesma porta que nos
liga ao que já findou, peças antigas para compor o seu próprio
quebra-cabeças. Nas ciências, em especial naquelas que chamamos
de Sociais, não é diferente. No confronto com o passado, muitas
vezes é necessário redefinir não só a importância dos
clássicos, mas demarcar a extensão e os limites da lista que
contempla aqueles que devem ser considerados os autores capitais de um
determinado campo, num movimento constante de reconstrução.
Contudo, a intensidade do retorno aos clássicos não é uniforme. Por vezes, estes adquirem uma centralidade imperiosa. Em outros
momentos, embora presentes, permanecem em estado periférico, passando
ao largo do centro das discussões. É exemplar do primeiro caso, a
Sociologia - não por eventualidade a mais prolífica área das
Ciências Sociais quanto a problematização da natureza dos
clássicos
2; do segundo, a Comunicação.
Na Sociologia, Durkheim, Marx e Weber são pontos de partida para
qualquer exercício que busque compreender a sociedade, e a certeza de
que o conhecimento novo não pode existir sem o conhecimento antigo os
coloca em posição privilegiada, como fundadores do discurso de
toda uma disciplina. Parafraseando a metáfora religiosa, ninguém
vai a Sociologia senão por eles. Como clássicos, sua função
"não é ser assimilado, no sentido de ser superado, e datado como
nas ciências naturais, mas ser elaborado, adaptado, colocado em um
novo idioma, aplicado a uma nova situação" (SHILS, 1980, p. 247)
3. Durkheim, Marx e Weber, portanto, não estão
adormecidos no passado, como pioneiros ingênuos, nem seus discursos
se esgotaram em si mesmos e em suas épocas. Antes, na verdade, suas
contribuições ao campo da Sociologia são continuamente
examinadas, possibilitando não apenas um conhecimento mais profundo
de seu objeto, mas da própria Sociologia, independente de qualquer
particularidade dos cientistas. Eles formam a tradição, a
herança do campo, e como tal são revisitados geração após
geração.
Na Comunicação, por outro lado, nos parece que a tendência é
diametralmente oposta. Um exemplo é a quadríade elencada por
Berelson em
The state of communication research (1959), formada por Harold Lasswell, Paul Lazarsfeld, Carl Hovland e Kurt
Lewin, que acaba representando o papel de clássicos na tradição
estadunidense de pesquisa
4. Na verdade, esses
mesmos autores encontram-se dispersos, perdidos em discursos que
privilegiam não a acumulação, o diálogo com a tradição, mas relegam-nos a apresentações cronológicas do
desenvolvimento do saber comunicacional. A tradição, assim, não
passa muito além de um conhecimento estanque, a ser transferido como
uma coleção de alfarrábios. A exceção à regra, talvez, seja Lazarsfeld, cujo prestígio ainda se faz sentir hoje. Já as
referências a Lasswell e Kurt Lewin são costumeiras em obras
panorâmicas, mas escassas quando se trata de análises mais
profundas. Para se ter uma idéia, num universo de 14 importantes
revistas da
área
5 , entre os anos de 1958 e 2008, apenas dois artigos são voltados para
repensar a obra lasswelliana, tendo-a como seu mote central. Lewin
é ainda menos lembrado: não há, também nesse universo, nenhum
artigo que resgate suas contribuições ao campo da
Comunicação. Mais que os problemas descritos, não se sabe, sequer, se podemos mesmo apontar tais autores como clássicos da
Comunicação, o que não ocorre com Durkheim, Marx e Weber, nem
mesmo com autores posteriormente incluídos no rol da tradição
sociológica, como Simmel, que se via, antes de tudo como um
filósofo.
Apontar as diferenças entre Sociologia e Comunicação no
tratamento dos clássicos, entrementes, não significa, em nenhuma
instância, que as duas áreas representem casos isolados. A
controvérsia sobre o recurso aos clássicos nas ciências se
estende há pelo menos, alguns séculos. Na obra
On Social
Structure and Science (1997), Merton observa que Galileu já afirmava
que "[...] um homem jamais se tornará um filósofo se permanecer se
preocupando com os escritos de outro homem" (p. 28)
6, e Weber, mais de duzentos anos
após a morte de Galileu, sugeria que "[...] cada um de nós sabe
que o que realizou será considerado antiquado em dez, vinte, cinqüenta anos" (p. 24)
7. Merton (1997), dessa maneira, questiona, até certa medida, o aforismo
newtoniano que prega a importância dos precursores da ciência: "Se
eu vi mais longe, foi por estar de pé sobre
8
9 nanos, gigantium humeris insidentes, ut possimus plura eis et remotiora
videre. Como anões nos ombros de gigantes, nós podemos
ver mais do que eles.
Da natureza dos clássicos
O termo clássico é longevo e, embora seus sentidos
hoje sejam aplicados de maneira diversa, todos carregam a marca de sua
origem, a velha região da Ática, na Grécia. Foi ali que o
gramático latino Aulus Gellius, no século II, o utilizou pela
primeira vez, para designar os escritos dos expoentes da primeira das
cinco classes romanas, os
classici. Gellius
recolheu, a partir dessa visão, centenas de histórias, que
rechearam 20 livros, sob o nome de
Noites Áticas, e
decretou: "[...]
classicus adsiduusque
aliquis scriptor, non proletarius" ou "o clássico é um escritor
de distinção, não um proletário"
10 (GELLIUS, 19.8.15). A definição restringe os clássicos
a representantes de uma classe especial, a mais alta, idéia que
permanece hoje num sentido figurado. Além disso, identifica os
clássicos com a tradição escrita, o que é válido hoje
somente até certo ponto, pois as artes, de uma maneira geral, passaram a ter seus representantes também da "classe mais alta". Essa idéia de um grupo privilegiado de autores chega mais tarde à
ciência, conforme veremos adiante. Gellius, contudo, estava falando
de literatura.
Segundo Saint-Beauve (2006)
11, um dos pioneiros na
busca da genealogia do termo clássico, a primeira referência
oficial à palavra na Academia foi no também primeiro Dicionário
da Academia, de 1764, publicado em meio aos avanços da
Revolução Científica dos séculos XVII e XVIII, no qual se
afirmava ser o detentor do título "um escritor antigo de
prestígio, aquele que é uma autoridade no que concerne ao seu tema
de trabalho" (p. 4). Embora essa não seja uma definição muito
clara, aparecem nela duas características importantes, ausentes em
Aullus Gellius: a inscrição dos clássicos no passado e a
influição pela autoridade. Mesmo assim, os ecos de Gellius ainda
se fazem ouvir. Não há muita distinção entre um autor
literário e um autor científico. O lugar do passado na Ciência
ainda não estava bem assentado.
Prima facie, a discussão
sobre as relações entre o conhecimento científico novo e o
conhecimento científico antigo só ganha força, realmente, ao
final da época de ouro da Ciência, no século XIX, em que o
questionamento da natureza de cada ciência e, por
conseguinte, de seus textos estruturantes, começa a fazer parte dos debates epistemológicos, com, é claro, diferenças de campo a campo.
Nas Ciências Naturais, que presenciaram mais de
perto a luta do Iluminismo contra as "trevas da ignorância", e nas
quais o peso das descobertas se coloca insistentemente, houve um
movimento até meados do século XVIII no qual "a ciência parecia
ser hostil à tradição; a tradição foi entendida como
prejudicial à ciência" (SHILS, 2006, p. 102)
12 ,numa rejeição ao conhecimento forjado no
passado
13 , que estaria, do mesmo modo, envolto em ignorância. Logo, entretanto, não se tardou a perceber que tal postura gerava, ela sim, trevas sobre o próprio conhecimento científico e Newton, talvez, tenha sido um dos primeiros a percebê-lo. Todavia, a
relação estabelecida hoje entre o passado e o contemporâneo nas
Ciências Naturais ocupa um lugar um pouco diferente daquele das
Ciências Sociais. Para as Ciências Naturais, a continuidade já
está internalizada em sua constituição. As Ciências Naturais
possuem aquilo que Kuhn chama de "exemplares": "exemplos concretos
de trabalhos bem-sucedidos" (ALEXANDER, 1993, p. 19)
14 . Inequivocamente, os "exemplares" de Kuhn
correspondem aos "clássicos". Porém, o processo de
acumulação nas Ciências Naturais faz com que o regresso a eles
não seja tão necessário, pois os "exemplares" restam
implícitos nas teorias contemporâneas.
Nas Ciências Sociais, cuja história é mais recente e cujas
tradições vão ser construídas, de fato, durante o século
XX, a direção tomada é díspar: ora tenta se equiparar às
Ciências Naturais, ignorando suas características distintas; ora
reconhece o retorno aos clássicos como um elemento importante e
decisivo na formação de seus discursos.
Avaliemos a primeira direção, tentar
equiparar-se às Ciências Naturais. O que se pode entender por
isso? Nessa visão, defendida em grande parte por Merton em
On the shoulders of
giants, as Ciências Sociais devem evitar o
retorno constante ao passado e empenhar-se em tornar a
acumulação tão intensa que a tradição permaneça
implícita e não mais sirva como mote de
questionamento. Nesse caso, logo que a acumulação ocorra, não
haveria mais necessidade de se voltar aos clássicos, como nas
Ciências Naturais. A intenção de Merton não deixa de ser boa. O que ele está dizendo, basicamente, é que, a longo prazo, assim
como as Naturais, as Ciências Sociais devem voltar pouca
atenção aos clássicos, e que, a curto prazo, devemos ser
possuídos por uma enorme cautela em sua utilização. Para ele, o
estudo dos clássicos deve ser relegado aos historiadores do campo. Contudo, tal assertiva torna invisíveis as diferenças entre as
Ciências Naturais e as Ciências Sociais e a percepção de que
o longo prazo ainda é, ao menos no atual estágio do desenvolvimento
das Ciências Sociais, realmente, longo.
Já dissemos que a acumulação nas Ciências Naturais se
organizou de forma distinta que nas Ciências Sociais. O discurso do
passado, nas Ciências Naturais, se aloca virtualmente, sem a
necessidade de se dizer nada. Segundo Jeffrey Alexander (1993), isso se
dá, prioritariamente, pela maior atenção dada, pelas Ciências
Naturais, à dimensão empírica, e não simbólica, de seus
dados. As dimensões não-empíricas estão, quase que
completamente, camufladas. Nas Ciências Sociais, pelo contrário, é a dimensão simbólica dos dados empíricos o que realmente
conta.
O privilégio dado à dimensão empírica faz com
que o
background no qual
os neófitos das Ciências Naturais são inseridos, apareçam
muito mais como modelos e técnicas confiáveis para explicar o
mundo. Como tais, seus clássicos são assimilados exatamente da
forma como Kuhn sugeriu. Mais que isso, a dimensão empírica resulta
em um número muito menor de discordâncias entre os pares que nas
Ciências Sociais, onde a contenda sobre qualquer assunto é
endêmica. Pautadas sobretudo no discurso, as Ciências Sociais
"enfocam os processos de raciocínio, mais do que os resultados da
experiência imediata" (ALEXANDER, 1993, p. 22)
15. Dessa maneira, o
que resta implícito nas Ciências Naturais se coloca no centro do
palco das Ciências Sociais.
Nelas, com a dimensão simbólica tendo primazia, de
outro modo, o
backgroundao qual os neófitos devem ser apresentados surge como um grande
mural, com algumas partes descascadas, que devem ser completadas pelos
novatos. Como completá-lo sem ter, sequer, a
noção do que estava no original? Não se pode, simplesmente, pintar um muro novo, pois se corre o risco de já não se estar mais
falando da mesma coisa, ou de, inadvertidamente, reinventar a roda.
Diante deste cenário, o retorno aos clássicos nos parece mais
adequado. São os clássicos, então, que nos dão um sentido de
integração e continuidade em meio à avalanche de conhecimento e
de discursos produzidos na contemporaneidade. O clássico reduz a
complexidade. O que é, então, um clássico para as Ciências
Sociais?
Clássicos são trabalhos pioneiros da exploração humana a quem
é dado um estatuto privilegiado em relação às
explorações contemporâneas num mesmo campo. O conceito de
estatuto privilegiado significa que profissionais contemporâneos da
disciplina em questão acreditam que podem aprender tanto sobre como o
seu domínio através da compreensão deste trabalho pioneiro como
podem a partir dos seus próprios contemporâneos [...] como
clássico, tal trabalho estabelece os critérios fundamentais de um
campo particular (Idem, p. 11-12)16
Nesse sentido, o termo clássico privilegia o conhecimento que se
encontra na origem de um campo. Como conseqüência, há muitas
vezes, coincidência entre clássicos e fundadores (como no caso de
Durkheim, Marx e Weber). O clássico, podendo ensinar tanto ou mais
que os contemporâneos, é, assim, uma referência, um ponto de
passagem do qual não se pode (ou não se deve) desviar. Ainda de
acordo coma definição de Alexander, os clássicos ocupam o lugar
de mestres, e toda a definição dos critérios particulares e
inerentes a um campo passa por eles.
Os clássicos, portanto, os grandes mestres do passado, representam a
porta de entrada na tradição (ou tradições) de um campo, peças importantes para compor o quebra-cabeças
contemporâneo de um determinado saber.
Do universo da tradição
Num mundo onde tudo o que é sólido se desmancha no ar, o termo
tradição se coloca como contrapeso à ebulição das
novidades. No entanto, de uma forma geral, tradição não é uma
palavra que goze de muito prestígio num orbe que eleva o novo, o
super novo, e o mais que super novo às categorias centrais de todas
as nossas discussões. Contudo, na vida social como na Ciência, a
tradição permanece.
Utilizamos comumente a palavra tradição para muitas coisas. Porém, o seu sentido mais amplo é simplesmente o de
traditum (SHILS, 2006). Tradição, no sentido de
traditum, se refere a qualquer coisa que seja transmitida ou
legada como herança do passado ao presente, sob quaisquer formas:
material ou simbólica, oral ou escrita. Nesse caso, o critério
decisivo é que, não importa como, "foi criada pela ação
humana, pelo pensamento e pela imaginação, e foi legada de uma
geração para outra" (Idem, ibidem, p. 12)
17 . Dizer que foi criada pela ação humana não significa dizer que
o foi de maneira proposital, mas sim que se consolidou como um elemento
da cultura. E mesmo que uma ação humana fosse planejada como
forma de gerar uma tradição, não haveria garantias de que tal
fato se concretizasse.
No sentido de
traditum, a tradição é uma necessidade
social e se faz sentir de forma evidente, sem muito questionamento. A
tradição "É o passado no presente, mas é tão mais parte do
presente quanto qualquer inovação recente [...] é algo que
foi criado, desenvolvido ou acreditado no passado" (SHILS, 2006, p. 13)
18.
A tradição, contudo não é vivida no presente como o era no
passado. A tradição é continuamente modificada. Embora o seu
cerne continue praticamente o mesmo, à tradição são somados
diferentes significados e novas práticas podem se constituir em torno
delas. Um dos traços mais marcantes no terreno do simbólico, a
tradição se reveste de novas possibilidades e é sucessivamente
recriada, não é apenas algo dado, ou puramente irracional, como
defendido por alguns teóricos racionalistas, como Edmund Burke (Cf. POPPER, 2002, p.162). A tradição, além de importante
repositório do passado, é um ponto de partida para novas
crenças e novas ações humanas. Apesar disso, assim como a
língua, a tradição só pode ser transformada pelo coletivo, carregando consigo um senso de integração, identidade e
filiação dos membros de uma comunidade ou sociedade. A
tradição, em sua persistência, gera o sentimento de
continuidade e de pertencimento, e armazena, em si, o conhecimento
primitivo da vida comunitária.
Mas, porque falar de tradição de forma genérica, se nosso
objetivo é falar de tradição na Ciência? Porque, como nos
mostra Karl Popper (2002), a Ciência segue uma tradição de
segunda ordem, mas cujas características são indiferenciáveis, na
maioria das vezes, das tradições sociais comuns, a saber: a
ligação com o passado, a própria construção da
tradição, a sua contínua
recriação, a sua
transformação pelo coletivo, a função de integrar e dar
identidade a uma comunidade, o sentimento de pertencer e continuar o
que já foi feito.
Porém, assim como as Ciências Naturais e as Ciências Sociais
aferem de maneira diferente a importância dos seus clássicos, a
percepção da Ciência de sua tradição também se
constrói a partir de outras instâncias, exatamente o que leva
Popper a falar de uma tradição de segunda ordem. Em
Tradition (2006), Shils já observa que "[...] o esforço
científico destina-se a conseguir algo novo; a
crença tradicional está contente com o que se acreditava antes"
(p. 104)
19 . Essa diferença repousa, sobretudo, no fato de que a Ciência é
igualmente herdeira de uma outra tradição, instituída na
Antiguidade Clássica: a do conhecimento crítico.
Há, sinteticamente, duas formas possíveis de se lidar com a
tradição: de forma acrítica, muitas vezes sem sequer sabermos
que estamos diante de uma tradição, repetindo-a passivamente, sem nos darmos conta do que ela representa. Fazemos isso todos os dias
e, em se tratando da vida cotidiana, não há, aí, necessariamente, algum mal. A outra forma possível é a atitude crítica, que pode
resultar em rejeição ou aceitação da tradição, de uma
maneira refletida e criteriosa. É esse o posicionamento que se
acredita ser o ideal na Ciência, que deve elaborar o seu discurso
não apenas herdando uma tradição sem questioná-la, mas
refletindo e acrescentando a ela novos direcionamentos. É nesse
exercício que o novo na Ciência aparece, e não na rejeição
ao passado. Como afirma Shils (2006),
O processo de sucessivas substituições não se trata de criar um
sistema auto-suficiente que nega o seu antecessor, nem de um corpo de
fatos definitivos por um outro corpo de fatos definitivos. É um
processo dialético de afirmação e negação, de
aceitação e revisão (p. 140)20
Reclamar, assim, o lugar dos clássicos e da tradição num
determinado saber, no nosso caso o Saber Comunicacional, não é
aprisionar-se em um castelo de ilusões que só existe no passado, nem se trata de um esforço vazio de apologia acrítica aos autores
pioneiros e às sendas deixadas por eles - que nós chamamos
tradição. Trata-se, outrossim, de entender, de fato, qual é o
papel representado por esses elementos na constituição de um
campo de conhecimento. Esse papel é o do ponto de partida. E muitas
vezes evita pontos de chegada vexatórios, pois desconhecer os
clássicos e a tradição representa também correr o risco de
afirmar como novo algo que já foi dito e repensado há muito tempo, implicando num esforço vão. É Popper quem nos diz, "Se
você não tem nada para alterar ou modificar, pode ser que você
nunca chegue a lugar nenhum" (2003, p. 174)
21 . Ou, o que é pior: pode ser que você nunca consiga saber, na
verdade, em que lugar, em que campo você está.
E o que os clássicos e a tradição do campo Comunicacional têm
a dizer sobre o lugar em que nós estamos?
Considerações finais: sobre clássicos, tradição e o Campo Comunicacional
De alguma forma, as noções de clássicos e tradição
permeiam nossos discursos. A primeira pouquíssimo aparece na
literatura da área de Comunicação, mas se manifesta de uma
maneira recorrente quando fazemos a costumeira distinção entre
teorias da Comunicação clássicas e teorias contemporâneas, tão cara a disciplina Teorias da Comunicação. Não seria
errôneo afirmar que internalizamos os primeiros de modo empírico, mas carente de reflexão. Já o termo tradição se encontra mais
assentado, inclusive, na literatura da área, e falamos livremente de
tradição estadunidense, Escola de Frankfurt, estudos de
recepção etc. Não obstante, ao tecermos nossas
considerações acerca das contribuições que as noções
de clássicos e tradição têm a oferecer a reflexão
epistemológica da Comunicação, é forçoso afirmar que, ao
fazermos isto, o fazemos porque, em ambos os casos, tal reflexão, até mesmo no que diz respeito, simplesmente, a delimitação dos
termos, se encontra, muitas vezes ou ausente ou realizada apenas de
maneira ilustrativa
22. A falta de ponderação
epistemológica sobre o que representam os clássicos e a
tradição no Saber Comunicacional, e mesmo na Ciência, grosso
modo, faz com que partamos de uma visão pouco científica, no caso
do primeiro, e conjeturemos aleatoriamente os autores dignos de tal
título; e, no caso da segunda, a apresentemos como verbete de
enciclopédia. Mais que isso, faz com que fiquemos perdidos na nuvem
das atualidades, ignorando a história de nosso próprio campo.
Certa feita, ao ser perguntado por um aluno qual o melhor caminho a ser
seguido nos estudos, Durkheim respondeu: "`Se quiser amadurecer o
pensamento, dedique-se ao estudo escrupuloso de um grande mestre, desmonte um sistema em suas engrenagens mais secretas. Foi o que fiz e
meu educador foi Renouvier"' (COHN, 2005, p. 56).
A resposta de Durkheim colocou rapidamente o aluno no âmbito daquilo
que ele, provavelmente, considerava essencial no conhecimento
cientifico: os clássicos ("um grande mestre") e a tradição
("desmonte um sistema em suas engrenagens mais secretas"). Como nos
inserirmos num campo do conhecimento sem distinguir seus clássicos e
suas tradições? E como falar em clássicos e tradições
desconhecendo sua natureza? Esses são dois problemas a serem
superados pela aproximação, mais do que necessária, numa
primeira etapa, da essência dos dois termos na Ciência. Os
clássicos abrem as portas da tradição e nos convidam a explorar
o campo ao qual estamos filiados de uma maneira mais profunda e
providenciam as bases para a eventual inovação, evitando o bem
descrito quadro segundo o qual
[...] Como as novas teorias continuam a se diversificar, se
espalhando e amadurecendo, o risco é que as velhas teorias se reduzam
a slogans, canalizadas em "escolas", ou entrincheiradas em
`paradigmas', inibindo, assim, a aventura da inovação conceitual, que deve ser inspirada pelo retorno aos clássicos, a reflexão sobre
os fundadores, e desfamiliarização dos cânones (BAHER, 2006, p. 11)23
Referências
, Jeffrey. "The centrality of the classics". In Social Theory
Today. GIDDENS, Anthony;
TURNER, Jonathan (Orgs.). California: Stanford University Press, 1993.
- BAEHR, Peter. Founders, classics, canons. Nova
Jersey: Transaction Publishers, 2002.
- CAMIC, Charles. Reclaiming the
Sociological Classics: The State of the
Scholarship. Boston: Blackwell Publishing, 1997.
- COHN, Gabriel. Para ler os
clássicos. São Paulo: Azougue, 2006.
- "Of what use are the
`classics'?". In Social Theory
Today. GIDDENS, Anthony;
TURNER, Jonathan (Orgs.). California: Stanford University Press, 1993.
- GELLIUS, Aullus. Attic Nights. Roman texts.
http://Penelope.uchicago.edu/Thayer/L/Roman/Texts/Gellius/19.html.
Acessado
em 10/02/2009.
- KEMPLE, Thomas M. "Founders, classics, canons in the formation of social theory" in: DELANTY, Gerard. Handbook
of Contemporary European Social Theory. Nova Iorque:Routledge, 2006.
- , Robert King. On
the shoulder of giants.Chicago: University of Chicago Press, 1993.
- . "The uses and abuses of classical theory". In On social
structure and science. , Robert King;
, Piotr. Chicago: University of Chicago Press, 1996.
- POPPER, Karl. "Towards a
rational theory of tradition". In Conjectures and
refutations. POPPER, Karl. Nova Iorque: Routledge, 2002.
- SHILS, Edward. "The trend
of Sociology". In The Calling of
Sociology and Other Essays on the Pursuit of
Learning. SHILLS, Edward. Chicago: University of Chicago Press, 1980.
- __________. Tradition. Chicago: University of Chicago Press, 2006.
Footnotes:
1Rafiza Varão é formada em Comunicação Social, com habilitação
em Jornalismo, pela Universidade Federal do Maranhão (1999), possui
mestrado em Comunicação pela Universidade de Brasília (2002), e
é doutoranda em Comunicação também pela Universidade de
Brasília. Atualmente é professora da Universidade Católica de
Brasília e professora da Faculdade de Ciências Sociais e
Tecnológicas do DF. E-mail: rafiza@gmail.com.
2A reflexão produzida pela Sociologia será, portanto, ao longo deste artigo, a principal condutora de nossa defesa
dos clássicos.
3No original: "is not to be assimilated, surpassed, and
rendered out-of-date as in natural sciences, but to be elaborated, adapted, put into a new idiom, applied to a new situation". Tradução nossa.
4Alguém pode afirmar que os casos
de Durkheim, Marx e Weber são completamente distintos da quadríade, afinal, os quatros fundadores de Berelson eram advindos de outras
áreas do saber que não a Comunicação. Contudo, será que
podemos afirmar que Durkheim, Marx e Weber eram sociólogos conforme
aplicamos o termo hoje? A competente avaliação de Peter Baher
(2002) nos mostra que, provavelmente, não.
5Journal
of Communication; Public Opinion
Quarterly; International Journal of Public Opinion Research;
Communication Research; Human Communication Research; Media, Culture
and Society; Communication Theory; Canadian Journal of Communication;
Communication Education; Communication Monographs; Mass Communication
& Society; Review of Communication; The European Journal of
Communication Research; e Critical Studies in Mass Communication.
6No original: "[...] a man will
never become a philosopher by worrying forever about the writings of
other men". Tradução nossa.
7No
original: "[...] each of us knows that what he has accomplished will
be antiquated in ten, twenty, fifty years". Tradução nossa.
8Não nos
parece, exatamente, que Galileu e Weber estivessem pregando uma
rejeição aos clássicos. Apenas, no caso de Galileu, o
desenvolvimento de uma autonomia, e no caso de Weber, um ciclo normal
no desenvolvimento do conhecimento científico. É curioso notar que
Merton apela a dois grandes clássicos para para expor sua
preocupação ao que ele identifica como uso abusivo da teoria
clássica.
9No
original:
10Tradução
nossa.
11Crítico literário, e ele
próprio um escritor, Saint-Beauve para por aí no que diz respeito
aos usos da palavra clássico na Ciência.
12No original:
"[...] Science seemed to be inimical to tradition; tradition was held
to be inimical to science". Tradução nossa.
13A
célebre frase de Newton, escrita por ele numa carta a Robert Hooke em
1676, utiliza o aforismo para defender o conhecimento passado e se
posiciona, justamente, contra a hostilidade.
14No original:
"[...] concrete example of succesfull work". Tradução nossa.
15No
original: "focuses the processes of reasoning rather than the results
of immediate experience". Tradução nossa.
16No
original: Classics are earlier works of human
exploration which are given a privileged status
vis-à-vis contemporary explorations in the same
field. The concept of privileged status means that contemporary
practitioners of the discipline in question believe that they can learn
as much about their field through understanding this earlier work as
they can from the work of their own contemporaries [... ] as a
classic, such work establishes fundamental criteria of a particular
field". Tradução nossa.
17No
original: "have been created through human
actions, through thought and imagination, it is handed down from one
generation to the next". Tradução nossa.
18No
original: "It is the past in the present
but is much part of the present as any very recent inovation [... ]
It is something which was created, was performed or believed in the
past, or which was believed to have existed or to have been performed
or believed in the past". Tradução nossa.
19No
original: "[... ] Scientific effort is intended to achieve
something new; traditional belief is content with what was believed
before". Tradução nossa.
20No original:
"The process of successive replacement is not the replacement of one
self-sufficient system which negates its predecessor; nor of one body
of definitively reported facts by another body of definitively reported
facts. It is a dialectical process of affirmation and denial, of
acceptation and revision". Tradução nossa.
21No original:
"If you have nothing to alter or to change, you can never get
anywhere".
22Com certeza, existem as exceções. Apenas não nos ocuparemos delas aqui.
23No
original: "[... ] As new theories continue to
diversify, spread and mature, the risk is that the older ones will be
striped-mined into slogans, channeled into `schools' or entrenched
into `paradigms', thereby inhibiting the adventure of conceptual
innovation that may be inspired by returning to the classics, rethinking the founders, and defamiliarization the `canon"'. Tradução nossa.