O Acontecimento e o Sensacional no Jornalismo
Leonel Aguiar1
Alice Baroni2
O artigo anteriormente publicado (AGUIAR, 2008a), concluímos que as
críticas elaboradas por certos autores (SOUSA, 2000; KURTZ, 1993;
MARSHALL, 2003; MARCONDES FILHO, 1988), ao classificarem um determinado
modo de jornalismo como sensacionalista, parecem querer opor uma
imaginária constituição democrática do espaço público e
da cultura legítima a uma suposta disfunção narcotizante do
entretenimento, que promoveria o conformismo social e reforçaria as
normas sociais. O jornalismo sensacionalista, nesse entendimento,
veicularia apenas a ampla trivialidade e o excesso de diversão
estaria "matando" os ideais iluministas da sociedade moderna, tal
como aposta Postman (1986). Entretanto, pode-se ver nestas críticas
aquilo que Edgar Morin define, ao estudar cultura de lazer, como a má
impressão causada pelo divertimento e pela evasão aos "moralistas
dessa confederação helvética do espírito que são as letras
e a universidade" (MORIN, 2002).
Invertendo a questão, apontamos que o sensacionalismo deve ser pensado
enquanto positividade, por ser uma forma de conhecimento que toma por
base as sensações enquanto uma das condições para o
entendimento e a reprodução da experiência imediata. Deleuze e
Guattari garantem que a sensação não é menos cérebro que o
conceito. Apenas a sensação está em um plano diferente daquele
das finalidades e dos dinamismos.
A sensação é contemplação pura, pois é pela
contemplação que se contrai, contemplando-se a si mesma à
medida que se contempla os elementos de que se procede. Contemplar é
criar, mistério da criação passiva, sensação.
Sensação preenche o plano de composição e preenche a si
mesma preenchendo-se com aquilo que ela contempla: sensação é enjoyment e self-enjoyment (DELEUZE e GUATTARI,
1997).
Como afirmam Deleuze e Guattari (1997), caso se considerem as conexões
nervosas excitação-reação e as integrações
cerebrais percepção-ação, não cabe perguntar em que
tempo ou nível aparece a sensação, pois está suposta e
mantida na retaguarda. A sensação coloca-se em um plano de
composição, formando no processo de contração do que a
compõe e compondo-se, por sua vez, com outras sensações nas
quais se contrai. Para esses filósofos, "a sensação contrai as
vibrações do excitante sobre uma superfície nervosa ou num
volume cerebral: a precedente não desapareceu ainda quando a seguinte
aparece. É a sua maneira de responder ao caos" (DELEUZE e GUATTARI,
1997). Contrariando a tese de que a produção do jornal
sensacionalista está vinculada a exacerbações das neuroses
coletivas ou satisfazer "as necessidades instintivas do público, por
meio de formas sádicas, caluniadoras, ridicularizadoras das pessoas"
(MARCONDES FILHO, 1988), a filosofia da imanência entende que a
sensação é a vibração contraída que se torna qualidade.
De nada adianta, portanto, procurar pela sensação se nos
limitarmos às reações e às excitações que elas
prolongam ou às ações e às percepções que elas
refletem. "É que a alma (ou antes, a força), como dizia Leibniz,
nada faz ou age, mas é apenas presente, conserva; a contração
não é uma ação, mas uma paixão pura, uma contemplação
que conserva o precedente no seguinte" (DELEUZE e GUATTARI, 1997).
Assim, ao invés de utilizar o termo jornalismo sensacionalista,
carregado por uma carga semântica pejorativa e desvalorizada,
preferimos, em outro artigo (AGUIAR, 2008b) cunhar o termo jornalismo
sensacional que, nesta perspectiva, quer dizer que a informação
jornalística se expressa em uma lógica da sensação a partir
da imediaticidade da experiência. É possível perceber que as
narrativas jornalísticas sensacionais, enquanto uma ordem do
discurso, estão arraigadas no próprio modo de produção
moderna da notícia, tal como a consumimos hoje. Mas, também é
aceitável compreender que, como o jornal deve utilizar recursos
gráficos e estilísticos para se tornar um produto vendável, o que
vai diferenciar a imprensa de referência - denominada "séria"
- da imprensa sensacional é somente o grau de utilização
dessas narrativas sensacionais
3.
Sobre o acontecimento
Ao sistematizar as conceituações dos critérios de
noticiabilidade, Wolf (2003) enumera cinco pressupostos implícitos
dos quais os valores-notícia são derivados: critérios
substantivos, relativos ao conteúdo e que articulam a importância e
o interesse da notícia; critérios referentes às características
específicas do produto informativo; critérios vinculados ao meio de
comunicação; critérios concernentes ao papel da
representação social que os jornalistas fazem do seu público;
critérios ligados à concorrência. Os valores-notícia são as
qualidades da construção jornalística dos acontecimentos e
funcionam como "óculos" (BOURDIEU, 1997) através dos quais os
jornalistas operam uma seleção e uma produção discursiva
daquilo que é selecionado. Ou seja, são as condições de
possibilidades de ver e dizer sobre a realidade social que estão
estratificadas na comunidade interpretativa dos jornalistas.
Os acontecimentos avaliados como importantes são, obrigatoriamente,
selecionados para se tornarem notícias, enquanto que o interesse
está vinculado à representação que os jornalistas fazem de
seu leitor e também ao valor-notícia definido como capacidade de
entretenimento. As notícias interessantes são as que procuram
narrar um acontecimento com base na perspectiva do "interesse
humano", das curiosidades que atraem a atenção e do insólito.
É esse critério de relevância - notícia interessante com
potencialidade de entretenimento - que se coloca em
contradição com o critério da importância própria dos
acontecimentos. Para resolver essa contradição, é possível
trocar um valor-notícia por outro: "a capacidade de entreter
situa-se em uma posição elevada na lista dos
valores-notícia, quer como um fim em si mesma, quer como
instrumento para concretizar outros ideais jornalísticos" (GOLDING;
ELLIOTT, 1979). A questão pode ser resolvida com a associação
desses dois valores-notícia: para informar o público é
necessário produzir um jornal que desperte seu interesse, não
havendo utilidade em fazer um tipo de jornalismo aprofundado, se os
leitores não se sentem atraídos.
Exemplos de enfoques inovadores de como é possível tornar,
simultaneamente, as notícias importantes e interessantes é a
prática editorial que vem sendo adotada pelos jornais
Extra e
O Dia, editados na cidade do Rio de Janeiro e que não
são considerados modelos de referência. Conforme já abordou Mauro
Wolf (2003), a competição entre os jornais - um
valor-notícia dos critérios relativos à concorrência -
tem, como conseqüência, contribuir para o estabelecimento dos
parâmetros profissionais e modelos de referência: no caso da
imprensa norte-americana, esta função é desempenhada pelo
New York Times e
Washington Post; no Brasil, os
atuais modelos de referência profissional são os jornais
O
Globo,
Folha de São Paulo e
O Estado de São
Paulo. Jornais que não estão nesse quadro de referência,
como
Extra e
O Dia, são discriminados por
determinados segmentos sociais como sensacionalistas ou de baixo
nível cultural. Entretanto, esses dois diários não só estão
entre os mais vendidos do país como já ganharam diversos prêmios
pela publicação de reportagens investigativas que foram
consideradas relevantes tanto do ponto de vista jornalístico e quanto
social.
Na principal premiação
4 para a imprensa, existente desde 1955, com as matérias
sendo selecionadas e julgadas por uma comissão formada exclusivamente
por jornalistas - avaliada, portanto, segundo os parâmetros
profissionais que regem a comunidade interpretativa dos jornalistas
- esses dois jornais já conquistaram diversos prêmios. Apesar da
premiação principal sempre ter permanecido com a imprensa de
referência, esses dois jornais diários vêem merecendo destaque,
por realizar um jornalismo capaz de tornar o fato significativo do
ponto de vista do interesse público em um relato. Além disso, tanto
o
Extra5 quanto
O Dia estão entre os dez maiores
jornais brasileiros em termos de circulação, conforme dados
disponíveis do Instituto Verificador de Circulação (IVC) de
2002 até 2006
6.
O jornal
O Dia teve, no Prêmio Esso de Jornalismo, as
seguintes reportagens avaliadas como as melhores, concorrendo com todas
as publicações impressas dos estados da região
Sudeste
7: "Greve dos
metalúrgicos" (1989); "Fome na Baixada" (1991); "Os 162 Carelis
da polícia" (1996); "Infância a serviço do crime" (1997);
"Crime sobre rodas" (2003); "Chacina" (2005). Em 2002, ganhou o
prêmio de melhor reportagem
8 impressa com a matéria "Morto sob custódia". Outras
premiações foram: melhor fotografia, em 2004, com "Ataque a
helicóptero: reação, fuga e execução"; e melhor
criação gráfica na categoria jornal, em 1998, com a matéria
"Infância Perdida". Por sua vez, o jornal
Extra, venceu o
prêmio de melhor reportagem em 2005, com "Janela indiscreta". Em
2007, foi premiado pela melhor primeira página, com a manchete
"Autoridades já fizeram piada com a crise aérea e quem chora somos
nós".
Como nossa pesquisa sobre o chamado jornalismo sensacionalista ainda
está em andamento, apresentamos Como nossa pesquisa sobre o chamado
jornalismo sensacionalista ainda está em andamento, apresentamos
nesse artigo as discussões conceituais e as perspectivas teóricas
que norteiam as análises. Devemos, assim, retomar a discussão
clássica de Roland Barthes, quando ele apresenta o conceito de
fait-divers. Ao analisar a estrutura do
fait-divers - entendido como o relato da anomalia, da
aberração, do passional -, Barthes (1964) afirma que um
acontecimento se torna notável em função da relação entre
o ordinário e o extraordinário. Além disso, o
fait-divers tem uma significação imanente à
própria informação, pois, ao nível da leitura, se constitui
pela sua imediaticidade, não remetendo a qualquer estrutura
implícita, já que suas circunstâncias, causas, passado e desfecho
estão dados. Para Barthes, o
fait-divers é definido por
sua imanência, uma vez que a estrutura articuladora de
significações estão fechadas em si mesmo.
Essa definição nos obriga a colocar em discussão a relação
entre o acontecimento e o fato jornalístico
9. O fato jornalístico integra um gênero discursivo que toma
o acontecimento como o seu objeto, mas antes de tudo constrói (e se
apresenta como) a informação do acontecido. Portanto, embora o
fato ordene a experiência, não esgota o acontecimento em sua
polissemia, "o primeiro estado de uma realidade sensacional" (SOARES,
1952). Fato, em latim
factum, é particípio passado; desse
modo, o fato é o acontecido. O acontecimento permanece no
agora.
Segundo Hannah Arendt (1993), o acontecimento pode ser percebido a
partir de dois pontos de vista: o do entendimento e o da ação, o
que significa dizer que, dependendo da perspectiva em que o
acontecimento é observado, ele pode vir a significar o fim ou o
começo de uma época. Pela perspectiva do entendimento, o
acontecimento é da ordem da contemplação; isso significa que o
fato ocorrido no mundo pode ser explicado a partir de seus
encadeamentos, como o desenlace daquilo que o precedeu inscrito em
determinado contexto causal. Do ponto de vista da ação, o
acontecimento surge como poder de revelação, mostrando
situações problemáticas que requerem uma solução ou
significando também a descoberta de novas possibilidades, antes não
imaginadas, de modo a surgir uma nova perspectiva de ação. Nesse
caso, o acontecimento emerge desvinculado de relações causais,
rompendo com o sentido do esperado pelo seu poder de máxima surpresa:
é o próprio acontecer, que reconfigura os sentidos do possível.
Assim, há no acontecimento um caráter inaugural, que marca o
início ou o fim de uma época.
Louis Quéré pensa o poder de abertura e de fecho do acontecimento
pela perspectiva de quem o sofre. Propõe-se a compreender como esse
poder se liga às modalidades de experiência remetidas pelo
acontecimento. Para ele, o poder do acontecimento não se liga à
ação ante a dialética da experiência. Nesse caso, entraria em
jogo um processo diferenciado de exploração, a estreita
articulação entre o suportar e o agir. Sendo assim, compreender o
acontecimento e o que ele tem a revelar não se dá, simplesmente,
por contemplação, mas por sua explicação causal, pois, para
Quéré (2005), "o verdadeiro acontecimento não é unicamente da
ordem do que ocorre, do que se passa ou se produz, mas também do que
acontece a alguém". Compreender o acontecimento pela perspectiva da
experiência, de quem o sofre, é abrir os sentidos possíveis do
acontecer, pois se o acontecimento é percebido a partir de quem o
sofre, os sentidos do possível e o sentido do acontecimento vão se
subdividir ao limite da experiência do número múltiplo de pessoas
que o sofrem. Mas o acontecimento não existe, simplesmente, enquanto
experiência, o acontecimento existe em si. Por isso, Quéré faz a
distinção entre o acontecimento e o "acontecimento a".
Já para G.H Mead (1964), o acontecimento nunca pode ser apreendido ou
percebido por aquilo que o precede - isto é, a partir de uma
reconstrução do passado -, pois é descontínuo e
pressupõe ruptura. Mas, o acontecimento pode ser percebido a partir
de um fundo de continuidade. Perceber, no entanto, o acontecimento pela
concepção da continuidade é um pensamento paradoxal, pois
se o novo emerge, não pode haver aí uma história da continuidade
da qual ele seja parte integrante, mesmo se, quando ele surge, as
continuidades que manifesta nos permitem descrever uma sucessão de
acontecimentos no âmbito do qual ele apareceu (QUÉRÉ, 2005).
Assim, o acontecimento tem um caráter esclarecedor de dizer o seu
passado e futuro, ou, como diz Quéré (2005), "que o passado e o
futuro são relativos a um presente evenemencial". Se o acontecimento
surge desvinculado de relações causais, se não pode ser
percebido a partir da reconstrução do passado pelo seu caráter
de ruptura, de novidade, compreendê-lo a partir do presente
evenemencial, apontado por Quéré, é dizer que, ao contrário de
ser percebido a partir de seu passado, é o acontecer do acontecimento
que vai fazer o papel de construir, reconstruir, passado/futuro.
A reconstrução cognitiva é essencial para a organização da
ação, pois é ela quem vai fazer o papel de reconstruir o
passado, o presente e o futuro. Nesse processo de reconfiguração
do mundo, o acontecimento surge como realidade até então impensada,
seja para o indivíduo ou toda uma comunidade, rompendo com os
sentidos de possível.
Quando há a ocorrência do acontecimento, o mundo não é mais o
mesmo, a realidade se modificou. Mas, é claro, há acontecimentos
esperados, que emergem como o resultado de uma complexa rede de
acontecimentos entrelaçados, que os precedem. Mesmo esses fazem
emergir o novo. O inesperado do acontecimento produz no homem o olhar
para o passado. Louis Quéré (2005) também aponta um modo para se
compreender o acontecimento: a passibilidade de quem o sofre.
Passibilidade, nesse contexto, significa o sujeito ou toda uma
comunidade sentir-se confrontada por um acontecimento.
Confrontação que ganha força de provação, travessia,
pondo a identidade em causa, seja de um sujeito ou de uma comunidade.
Nesse sentido, Quéré vem interpretar o acontecimento a partir da
dialética da experiência. Assim, o autor passa da análise do
acontecimento em si para pensar o "acontecimento a".
O "acontecimento a" tem relação com os efeitos do acontecimento
em uma pluralidade de seres - animados e inanimados -, e também
com a capacidade de o acontecimento produzir mudança,
transformação, no substrato material ou imaterial. A catástrofe
natural é o exemplo apontado pelo autor para ilustrar o seu
pensamento. Mas, experiência só existe entre dois seres em
relação. Não há experiência entre o acontecimento e um ser
inanimado. A experiência ocorre quando ambos os seres, mutuamente, se
modificam, quando há afetação conjunta. O sujeito ou a
comunidade sofre o acontecimento, se desconstrói, e, nesse processo
de desconstrução, o homem ou a comunidade constrói novos
sentidos para o acontecer, o que implica, simultaneamente, um processo
de construção/desconstrução. Pelo existir desse processo,
Quéré diz que o acontecimento se torna um "fenômeno de ordem
hermenêutica" (QUÉRÉ, 2005).
Quéré (2005) garante que "o acontecimento continua, de facto, a
ocorrer e a singularizar-se enquanto produzir efeitos sobre aqueles
que afecta. Não efeitos causais, mas efeitos na ordem do sentido". O
acontecimento, no entanto, se transforma pelo modo a possibilitar que o
homem se aproprie dele. Os acontecimentos, assim, vêm se assemelhar a
quem os recebe, a partir de seus sentidos de possível, de sua
recepção, afetação e resposta. Mas há uma ressalva: o
limite do poder de ação sobre o acontecimento se dá no que ele
foi, dá-se no acontecido. Significa que não se pode modificar o
ocorrido; portanto, a ação de transformá-lo está na ordem
do sentido.
Para Louis Quéré, fato e acontecimento são fenômenos distintos.
O acontecimento, diferente do fato que pode carregar sentido ou valor
para alguém, é o próprio sentido: o acontecimento é ele
próprio criador de realidade. O acontecimento instaura o novo, sendo
descontínuo constitui-se como abertura de "novas possibilidades
interpretativas" (QUÉRÉ, 2005), nas dimensões passado, presente
e futuro.
É interessante a abordagem que o autor faz sobre o fato e o
acontecimento em sua perspectiva espaço-temporal. Enquanto o fato
situa-se, enclausurado, em um determinado tempo-espaço, o
acontecimento transborda em ambos os sentidos, espaço e tempo.
Espacialmente porque o acontecimento estende-se a lugares muito
distantes ao ocorrido e, temporalmente, porque o acontecimento
expande-se na reconstituição do passado e futuro.
O acontecimento dá vida ao passado, devido ao seu ineditismo. Após o
acontecido, o passado precisa ser reconstituído como uma tentativa de
compreensão do acontecimento. No entanto, para Quéré, o
acontecimento só pode ser compreendido no futuro. Ele requer
defasagem no tempo do ocorrido, não é possível, para o autor,
compreender e, ao mesmo tempo, ser contemporâneo ao acontecimento. No
entanto, Quéré faz uma ressalva.
O sujeito não é a medida do acontecimento. Do contrário, não
haveria acontecimento possível, dotado de um poder de revelação
e de um potencial de inteligibilidade: haveria apenas factos revestidos
a posteriori de um sentido que antes não possuíam. Não
é assim que os acontecimentos se inscrevem na ordem dos sentidos
(QUÉRÉ, 2005).
Portanto, o acontecimento se liga à dialética da experiência, que
significa dizer que produz sentido e reconfigura os sentidos de
possível. Nessa produção e reconfiguração em
transação com o sujeito ou a comunidade acontece a experiência.
A experiência surge da constituição do sujeito e do
acontecimento, acontece na tessitura imbricada de acontecimento e
comunidade receptora do acontecido.
Gilles Deleuze (2006) pensa os acontecimentos - os acontecimentos
puros, segundo suas palavras -, a partir de Lewis Carroll, em
Alice e também em
Do outro lado do espelho. O
filósofo, ao se apropriar da obra de Carroll, apresenta-nos a
constituição paradoxal da teoria do sentido, pois, para ele, "o
sentido é uma entidade não existente, ele tem mesmo com o
não-senso relações muito particulares" (idem). Para ilustrar
o seu pensamento, Gilles Deleuze expõe-nos a seguinte frase:
"Alice cresce". Com isso, Deleuze desenvolve a constituição do
pensamento paradoxal, pois dizer "Alice cresce" significa dizer que
ela se torna maior do que antes e menor que agora; que é um movimento
simultâneo para ambos os lados, não uma coisa ou outra. "Tal é a
simultaneidade de um devir cuja propriedade é furtar-se ao
presente. Na medida em que se furta ao presente, o devir não suporta
a separação nem a distinção do antes e do depois, do
passado e do futuro" (DELEUZE, 2006).
Como pensar o paradoxo do puro devir? Como compreender este furto do
presente a não ser a partir da identidade infinita? Para Deleuze,
quem vem fixar os limites é a linguagem, como, do mesmo modo, permite
a distensão ao infinito, pelo devir ilimitado, que se torna, para o
filósofo, o próprio acontecimento, "pois o acontecimento, sendo
impassível, troca-os tanto melhor quanto não é
nem um
nem outro, mas seu resultado comum (cortar-ser cortado)" (DELEUZE,
2006). A essência do devir vem a ser o oposto do bom senso, que
concebe um sentido determinável para as coisas do mundo; o sentido do
devir, o pensamento paradoxal, no entanto, vem a ser esta distensão
simultânea para ambos os lados. Assim, Deleuze (2006) afirma que "o
paradoxo aparece como destituição da profundidade, exibição
dos acontecimentos na superfície, desdobramento da linguagem ao longo
deste limite".
Deleuze retoma uma possível história da filosofia para demonstrar
que os estóicos, amantes do paradoxo, rompem com os
pré-socráticos, com o socratismo e o platonismo. Enquanto para
Platão existiam duas dimensões - uma, das coisas limitadas e
medidas, de qualidades fixas (permanentes ou temporárias); outra, do
puro devir, que é um devir louco, desmedido, que se furta ao presente
coincidindo passado e futuro -, para os estóicos, só existe, no
tempo, o presente, que abarca o passado e o futuro. Mas, é o passado
e o futuro que insistem no tempo dividindo ao infinito cada presente,
segundo as palavras de Gilles Deleuze. Há nesse pensamento, duas
leituras simultâneas do tempo, ao contrário das três dimensões
sucessivas que conhecemos.
Em todo acontecimento existe uma dupla estrutura. Uma é o momento
presente, instante em que o acontecimento se efetua, nas palavras de
Deleuze (2006), "aquele em que o acontecimento se encarna em um estado
de coisas, um indivíduo, uma pessoa"; nesse caso, o passado e o
futuro serão revistos, percebidos, constituídos a partir do
presente evenemencial, de Quéré (2005), pelo ponto de vista de quem
o encarna. A outra é o passado e o futuro em si mesmos, destituídos
do presente. Essa dimensão temporal é livre no sentido de não se
ligar a um tempo presente fixo para se constituir. Por isso, Deleuze
diz que essa estrutura é "impessoal e pré-individual, neutra,
nem geral, nem particular,
eventum
tantum..." (DELEUZE, 2006). O passado e
o futuro fazem-se, constituem-se, em movimento, é o presente
móvel que se produz a cada instante, desdobrando-se em passado/futuro.
Deleuze, para ilustrar a dupla estrutura do acontecimento, apropria-se
de Maurice Blanchot, quando escreve sobre a morte.
Ela é o abismo do presente, o tempo sem presente com o qual eu não
tenho relação, aquilo em direção ao qual não posso me
lançar, pois nela eu não morro, sou destituído do
poder de morrer, nela a gente morre, não se cessa e não se
acaba mais de morrer (DELEUZE, 2006).
A destituição do
eu para a
gente tira do
acontecimento o seu caráter privado ou coletivo, individual ou
universal. O acontecimento
morrer, descrito por Blanchot,
torna-se para Deleuze similar a
chove: é o acontecimento
puro, que é, ao mesmo tempo, singular, privado e coletivo.
Autores como Raquel Paiva e Muniz Sodré concordam com a posição
de Louis Quéré sobre a dificuldade de as ciências sociais lidarem
com a estruturação da experiência coletiva e individual a
partir da ocorrência do acontecimento, mas apontam que esse
posicionamento não é suficiente para fazer desvanecer, na
Antropologia e Sociologia, o esquema da causalidade a partir do fato, o
que ocorre também no jornalismo. "Na notícia, estratégia ou
gênero discursivo essencialmente jornalístico, o real da notícia
é a sua `factualidade', a sua condição de representar um facto
por meio do acontecimento" (PAIVA e SODRÉ, 2005).
Assim, o jornalismo incorpora a compreensão que o senso comum tem
sobre o que vem a ser o fato, especialmente, a partir do positivismo de
Augusto Comte. Para a doutrina positivista, o fato é compreendido
como uma "experiência sensível da realidade" (PAIVA e SODRÉ,
2005). Para cada fato existe a sua respectiva correspondência com um
dado sensível, uma sensação, fazendo com que a fonte de todo o
saber se torne a intuição empírica. A partir dessa lógica de
pensamento, tem validade o que pode ser observado empiricamente.
Maurice Mouillaud,
em
A crítica do acontecimento ou o
fato em questão, discute o tema levantando a hipótese de os termos
"acontecimento" e "fato" são utilizados como sinônimos.
A hipótese que sustentamos é a de que o acontecimento é a sombra
projetada de um conceito construído pelo sistema da informação,
o conceito do `fato'. Os acontecimentos explodem na superfície da
mídia sobre a qual se inscrevem como sobre uma membrana sensível.
Mas põem em ressonância os sentidos que nela são inscritos
, 2002).
Entendemos que Mouillaud cria uma dualidade entre o acontecimento e a
informação. Para ele, a informação, ao contrário do
acontecimento, pertence ao regime aberto. A informação surge como
um apelo, como um fluxo de emissão e recepção entre sociedades
que se inter-relacionam, transformando as sociedades, criando crises.
Desse modo, a experiência jamais vai ser móvel, pois a
experiência existe única e exclusivamente em si. Já a
informação, a partir do `padrão do fato' transpõe
territórios, transpõe o próprio tempo.
Este intercurso entre a experiência e o fato, segundo Maurice
Mouillaud, ocorre de vários modos, conforme ele classifica: o
acontecimento pré-construído; o acontecimento polissêmico; o
acontecimento orientado e o acontecimento e programação. Sem nos
esquecermos, é claro, que o acontecimento aqui é compreendido como
"a sombra projetada de um conceito construído pelo sistema da
informação, o conceito do `fato"' (MOUILLAUD, 2002).
No acontecimento pré-construído, "os acontecimentos da mídia se
encaixam em formas que já são construções do espaço e do
tempo. A mídia constrói a `cena do acontecimento"' (MOUILLAUD,
2002). O acontecimento, por existir vinculado às relações de
espaço e tempo, por ser uma "cena temporal", uma vez captado pela
mídia, sofre a emolduração do olhar que o reconstrói. Ocorre
um processo de emolduração do real.
Já no acontecimento polissêmico,
o acontecimento e a mídia confundem-se em um ponto em que a fala da
mídia torna-se performativa, e não mais, apenas descritiva.
(...): é acontecimento aquilo que é definido como acontecimento. O
acontecimento não é mais descritivo e, sim, reflexivo (MOUILLAUD,
2002).
Nesse caso, a mídia envolvida no acontecimento cria os seus limites a
partir de seus discursos proferidos. Desse modo, não ocorre uma
emolduração do real, mas sim a construção deste pelo
discurso. Esse apontamento de Mouillaud dialoga com a posição da
pesquisadora Mayra Rodrigues Gomes (2000) que diz que um acontecimento
se elege como tal devido a uma escolha feita pelas mídias.
No acontecimento orientado,
o `fato' e o `acontecimento' não têm o mesmo status. O `fato' é o
paradigma universal que permite descrever os acontecimentos, uma regra
da descrição dos mesmos (a codificação de toda
experiência, seja qual for a natureza e a origem). O acontecimento
(quando falamos de acontecimento `orientado') designa uma exigência
da representação. A escolha de uma narrativa entre as diferentes
narrativas possíveis depende dos posicionamentos da tela, mas ela
não afeta o código (o modelo do `fazer') que serve para
descrevê-la (MOUILLAUD, 2002).
O acontecimento orientado nada mais é do que a escolha de uma
narrativa entre tantas outras que podem ser construídas a partir do
acontecimento. Maurice Mouillaud nos dá o exemplo de uma greve no
metrô, a qual, a representação desta significará,
simplesmente, a narrativa daquilo que a cidade lhe reflete.
Quanto ao acontecimento e programação, "cada jornal - e cada
tipo de jornal - pode ser considerado como uma expectativa de
acontecimentos" (idem, 2002). O autor lembra que o repórter possui
suas expectativas em relação ao acontecimento, isso é, a
mídia constrói narrativas, antes de chegar ao local do
acontecimento. Mouillaud conclui que os grandes acontecimentos da
mídia deveriam ser aqueles que permitissem um ver e um não ver. "O
acontecimento seria um recurso cujo valor residiria menos no que ele
é do que no que não é" (MOUILLAUD, 2002). A conclusão de
Mouillaud funda-se na reflexão de que, para o acontecimento, não
existe a compreensão do todo. Até por que, em suas próprias
palavras, "estar no âmago de uma batalha é nada compreender"
(idem, 2002).
Considerações finais
A capacidade de entretenimento constitui-se como um valor-notícia
fundamental para que um acontecimento possa adquirir os requisitos
necessários para ser construído enquanto narrativa jornalística.
Valores-notícia são qualidades dos acontecimentos que produzem as
condições de possibilidades para que sejam transformados e
contidos em um produto informativo. Considerar a notícia um produto
industrial disponível para ser vendido no mercado, implica ressaltar
a existência de uma hierarquia de interesses previsíveis para a
edição do material jornalístico, dentre os quais um
acontecimento merece destaque pelo "entretenimento que proporciona"
(MEDINA, 1988).
A partir da discussão de Benjamin sobre a "perda da aura" em
relação ao teatro e a pintura com o aparecimento das técnicas
de reprodutibilidade, podemos também dizer - ao refletirmos sobre
a história da imprensa - que a fase de produção industrial
dos jornais também trouxe a "perda da aura" que envolvia a fase
publicista da imprensa, com seus longos artigos opinativos voltados
para a educação política de seus leitores, conforme os ideais
iluministas. Ou melhor: o que se atrofiou nas épocas da
aceleração da reprodutibilidade técnica do jornal - quer
seja a
penny press do final do século XIX e começo do
século XX ou o infotenimento do final do século XX e começo do
século XXI - foi a aura da imprensa iluminista como instrumento de
conscientização e mudança social. As massas procuram a
distração no jornal sensacional, enquanto o reformador iluminista
aborda a imprensa "séria" com recolhimento e devoção. Para as
massas, o jornal sensacional é objeto de diversão. "A
recepção através da distração constitui o sintoma de
transformações profundas nas estruturas perceptivas" (BENJAMIN,
1993).
Referências bibliográficas
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Footnotes:
1Professor do PPG-COM da PUC-Rio. Doutor e
Mestre em Comunicação pela UFRJ. Jornalista. Coordena o Grupo de
Estudos em Jornalismo Impresso e Online da PUC-Rio.
Email: laaguiar@uol.com.br.
2Mestre em Comunicação Social pela
PUC-Rio. Jornalista. Integra o Grupo de Estudos em Jornalismo
Impresso e Online. Email:
abaroni24@terra.com.br.
3Ao discutir a
transformação da atividade jornalística em grande empresa
capitalista, Marcondes Filho ressalta que a notícia, enquanto
mercadoria, foi ganhando mais investimentos para melhorar sua
aparência de valor de uso, pois o jornal deve "vender-se pela sua
aparência; o que vai diferenciar um jornal dito `sensacionalista' de
outro dito `sério' é somente o grau". (MARCONDES FILHO, 1988).
4Patrocinado pela empresa Esso, o
Prêmio Esso de Jornalismo é o principal desse concurso; a seguir,
vem o Prêmio de Reportagem e as premiações regionais. Em 2007,
foram inscritos 1.173 trabalhos nas mais diversas categorias, sendo 552
reportagens.
5O jornal
Extra ocupa o terceiro em
circulação média diária no período de janeiro a dezembro de
2006, com um 267 mil exemplares. O primeiro lugar é da
Folha
de São Paulo (309 mil), seguido de
O Globo (276 mil). O
jornal
O Dia está em décimo lugar, com 122 mil exemplares
em circulação. Já ocupou a quinta colocação em 2002 e
2003.
6Ver em
http://www.anj.org.br/industria-jornalistica/jornais-nobrasil
7Prêmio Esso Regional Sudeste.
8Prêmio Esso de Reportagem.
9Ver: BARONI
(2008).