Construção do homem público através do teatro: a imagem de
Getúlio Vargas construída pelas apresentações brasileiras
Eliza Bachega Casadei1
2008
Quando a linguagem é separada do fluxo do discurso e é condensada em
alguma situação física e visível enquanto imagem, ela adquire
todo um sistema de novos significantes. Muitas vezes, quando isso
acontece, uma situação caracterizada por um encadeamento de
eventos complexos se modifica e se transforma em uma situação de
fácil entendimento para o espectador, pelo simples motivo de ser
capaz de resumir claramente uma situação.
As peças teatrais que trabalham com sátiras são mídias
capazes de proporcionar esse entendimento. Assim como a charge
gráfica, as peças teatrais de tipo chargesco e do tipo satírico
abusam da personificação "de um princípio ou idéia abstrata
que, no teatro, é realizada por um personagem revestido de atributos
e de propriedades bem definidas (a foice para a Morte, por exemplo)"
(PAVIS, 1999).
Uma outra característica da charge e da sátira teatral é o fato de
que elas retratam fatos do presente recente através de
interpretações próprias e com o recurso do humor como elemento
de ligação fundamental. E é por isso que podemos afirmar que
"a força e o perigo do cartunista", e, nesse caso, portanto,
também do autor teatral, "estão no fato de ele apelar para essa
tendência e nos facilitar a abordagem das abstrações como se
fossem realidades tangíveis. Em outras palavras, o cartunista apenas
assegura o que a linguagem preparou" (GOMBRICH, 1999: 128). Podemos
dizer, portanto, que a grande atração de peças teatrais que
tratam de temas políticos é oferecer uma realidade didaticamente
sensível a imagens abstratas e resumir claramente uma
situação:
Se rimos ou não, isso vai depender da seriedade do problema. Se os
cartuns serão ou não eficientes como propaganda e nos farão mudar
de opinião, isso também é uma pergunta mais fácil de formular
do que de responder. (...) É possível que sejamos como as
crianças, que são facilmente logradas com uma resposta. Qualquer
comparação que torne o não-familiar mais claro em termos de
algo mais familiar nos dará a satisfação do entendimento
pretendido, qualquer que seja o mais que ele possa revolver em nós.
Mas não será isso exatamente, outra vez, o que denominamos
função do mito? O primitivo inquiridor que quer saber por que o
sol se põe no começo da noite pode ficar bastante satisfeito
quando lhe dizem que ele está indo descansar durante a noite, e mesmo
o trovão e o relâmpago são menos insuportáveis se nos falarem
dos raios de Júpiter ou das descargas elétricas (quase não
importa qual) (GOMBRICH, 1999: 131).
O presente artigo tem o objetivo de entender como as peças teatrais
produzidas durante o governo de Getúlio Vargas condensaram e
resumiram sua atuação política, transformando e reconfigurando
a forma como foi construída a imagem pública do presidente.
Faremos um estudo, portanto, sobre a construção da figura
pública a partir da análise das peças que contenham a imagem de
Getúlio Vargas. Gostaríamos de verificar quais são as
representações sociais que envolvem essa figura e qual é o
papel do teatro enquanto mídia na construção dessas
representações.
Utilizamos aqui o termo "representação social" conforme ele é
descrito por Erving Goffman. Para este pesquisador, isto é, nada mais
do que "toda atividade de um indivíduo que se passa num período
caracterizado por sua presença contínua diante de um grupo
particular de observadores e que tem sobre estes alguma influência"
(GOFFMAN, 1985). É como se todas as pessoas estivessem o tempo todo
representando um papel e este se tornasse "uma segunda natureza e
parte integrante de nossa personalidade" (PARK citado em GOFFMAN,
1985: 27).
Quando essas representações - que são socialmente
construídas, mas operam individualmente - ultrapassam a
individualidade e passam a ser parte integrante dos produtos culturais,
a questão se transforma. Isso porque, fugindo ao controle do
representado, uma série de outras forças sociais também são
transformadas em atores que recodificam estas representações. A
condensação de uma situação complexa em uma imagem de
fácil entendimento, portanto, envolve uma série de atores sociais,
o que torna a questão mais complexa e, potencialmente, muito mais
interessante.
Um dos atores envolvidos nesse processo é oferecido pela qualidade do
corpus que será analisado: trata-se da censura. Isso porque o
corpus de pesquisa é parte integrante do Arquivo Miroel Silveira, da
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e
do Arquivo do Estado. Ele possui mais de seis mil processos de censura
teatral que passaram pelo Departamento de Diversões Públicas do
Estado de São Paulo, no período entre a década de 20 e a de 70. O
trabalho desenvolvido pela autora está alocado dentro do eixo
temático "O Poder e a Fala na Cena Paulista", sob orientação
e coordenação da Prof. Dr.
Mayra Rodrigues Gomes, que tem como foco de análise as palavras que
foram vetadas. Através do levantamento histórico combinado com o
levantamento semântico dos termos censurados, buscamos entender as
motivações do censor em vetar determinadas expressões, em
detrimento de tantas outras possíveis. Estima-se que,
aproximadamente, 1.304 peças do arquivo sofreram cortes de
palavras.
A metodologia utilizada diz respeito a um viés da análise
do discurso, a saber, a "análise arqueológica do discurso".
"Esta terminologia a vincula às idéias de Michel Foucault e
também a um plano de análise que vai buscar na plataforma cultural,
nas estratificações ou matrizes assentadas em determinado tempo e
lugar, as razões de ser de uma significação especial das
expressões e palavras vetadas" (GOMES, 2008).
Outro aporte teórico complementar à análise do discurso
será fornecido pela teoria das implicitações de Oswald Ducrot,
baseada nos conceitos de pressupostos e subentendidos. Um pressuposto
diz respeito às condições lógicas de existência de um
enunciado. Os subentendidos, por sua vez, remetem ao contexto de
leitura por parte do espectador (GOMES, 2008).
Partimos do entendimento de que "os mecanismos conducentes à
transformação de um modo em outro podem não ser exclusivamente
internos ao modo, mas podem derivar da conjunção e
interação de sociedades distintamente estruturadas. Nesse
sentido, todo desenvolvimento é desenvolvimento misto" (Hobsbawn,
2005: 181). Por isso, as modificações na figura de Vargas no
teatro não serão consideradas como unidades fechadas, mas sim,
através de suas relações com outros produtos culturais.
As peças analisadas no presente artigo serão: "Aluga-se um
cavanhaque", de Fernando Alves da Costa e Erastótenes Frazão
(Dezembro de 1930); "Com Getúlio é na Batata", de Juracy Vianna
(Novembro de 1930); "Corações Paulistas", de Adolpho Sampaio
(Agosto de 1935); "Quem será o homem", de Raymundo Chaves e
Belisário Couto (Novembro de 1936); e, por fim, "Amarga Realidade",
de José Freire da Silva e Francisco Netto (Agosto de 1945).
Aluga-se um cavanhaque: Vargas como a alegoria do país
Se, em 1930, após a vitória da Aliança Liberal, Vargas dizia que
"só pelas armas seria possível restituir a liberdade ao povo
brasileiro e (...) arrancar a máscara de legalidade com que se
rotulavam os maiores atentados à lei e à justiça" (VARGAS,
1938: 69-74), em "Aluga-se um cavanhaque", Liberdade e Legalidade
são mais do que conceitos políticos: são personagens.
A Legalidade se personifica, visivelmente, em "um tipo perfeito de
cocote, cheia de artifícios e vaidades". A Liberdade, o oposto da
primeira, é "uma moça muito interessante e culta". Elas são
figuras que desfilam a frente dos olhos do espectador e que agem
segundo as regras de convivência do mundo social. O discurso de
Vargas transcrito acima claramente hierarquiza o discurso da liberdade
como muito superior ao da legalidade. Na peça, porém, somos
levados muito além desse ponto: como espectadores, desejamos
calorosamente que Liberdade ganhe o coração de Brasil.
A conjugação entre a personificação, a condensação e o
entendimento esclarecedor pode ser observada em todas as passagens de
"Aluga-se um cavanhaque". No personagem Brasil, porém, é onde
essa relação se expressa da forma mais curiosa. Ele não assume
a revolução como uma boa opção para se livrar de Legalidade
imediatamente. Brasil é antes representado como cuidadoso, do que
como tolo, pois, somente depois de muita consideração ele vê a
Revolução como viável na busca do amor de Liberdade.
Uma primeira leitura revela só um enredo inocentemente construído
com reviravoltas e intrigas comuns a inúmeras peças de teatro.
Quando lembramos que a peça foi encenada pouco mais de um mês
após a posse de Getulio Vargas no poder, porém, ela adquire novos
significados.
Após perder a eleição, Vargas não assume a via
revolucionária como uma opção. Ao contrário, por inúmeras
vezes, chega a negá-la. Um editorial publicado em O Estado de São
Paulo, por exemplo, elogia essa reação no candidato derrotado
afirmando que Vargas seria "um modelo de prudência, de bom tom e de
patriotismo. Nem o mais longínquo aceno a medidas violentas (...)
dá bom exemplo na regeneração dos costumes políticos"
(BORGES, 1979: 105).
A falta de definição das posições varguistas também eram
pautas constantes em outros jornais de maneira menos elogiosa. O
Diário Nacional, por exemplo, critica o "temperamento taciturno e
indeciso do ilustre Sr. Getulio Vargas". O Correio Paulistano chega a
inventar a expressão "getulice": "sinônimo confortável e lauto
de falta de lógica, de tipo instável, de todas as coisas
contraditórias, sem bases sólidas, sem limites fixos, sem pé nem
cabeça, misturas que não se misturam..." (BORGES, 1979: 96).
Isso tudo antes de sua posse à presidência.
Como justificar essa indecisão toda sem passar pela via do oportunismo
e transformar Vargas no "grande reformador que, vencendo masculamente
todos os tropeços, aí está para realizar serena, mas
inflexivelmente a obra de reconstrução do país que a
Revolução vitoriosa foi o primeiro e decisivo passo" (editorial
publicado no Diário Nacional, apud BORGES, 1979: 117)? Ora, talvez
não haja maneira mais eficiente de fazê-lo do que colocar essa
idéia no jogo simbólico da esfera pública, em busca do
monopólio da violência simbólica legítima.
A peça não cita, em nenhum momento, o nome de Vargas. Mas a
aproximação da trajetória de Brasil na peça com a
participação efetiva de Vargas na Revolução de 30 é tão
clara que dificilmente passaria desapercebido para um espectador que
assistisse a peça quando os acontecimentos descritos acima ainda
estavam tão frescos na esfera pública.
A comemoração bem humorada da Revolução de 30 em "Com
Getúlio é na Batata"
A relação estabelecida entre Getulio Vargas e as formas populares
de arte era bastante dúbia. Ao mesmo tempo em que se censuravam os
artistas, Vargas procurava dar mostras de simpatia por essas
representações. A mesma ambiguidade também se expressa nas
formas de financiamento e fomento da cultura popular. Se, por um lado,
em "A Hora do Brasil", ao lado das realizações governamentais,
tocava-se também música popular - como uma forma de
aproximação menos ostensiva das massas por parte do governo -
por outro, era muito difícil a obtenção de dinheiro
governamental para atividades artísticas populares. Fato, porém,
era que esse contingente de peças e músicas e charges, entre
outros produtos culturais populares, que falaram sobre Getulio Vargas
(concebidos de forma espontânea ou estimulada) foram fundamentais
para a construção de sua imagem política.
Essa relação entre a arte popular e a política getulista já
podia ser percebida desde a Revolução de 30. "Como decorrência
do movimento revolucionário e das suas causas, mas também do que
acontecia mais ou menos nos Estados Unidos, houve nos anos 30 uma
espécie de convívio íntimo entre a literatura e as ideologias
políticas e religiosas" (CÂNDIDO, 1989: 188). É nessa mesma
época, também, que a cultura deixa de ser encarada como algo que
deveria se confinar às esferas da aristocracia. Pelo menos em tese, o
que incrivelmente já representava certo avanço, a cultura passou
a ser vista como direito de todos.
A relação entre política e cultura nos anos 30, como enfatiza
Lúcia Lippi de Oliveira, e que se desenvolveu plenamente durante o
Estado Novo, estava relacionada ao fato de que a política era vista
como uma espécie de imposição do social e, por esse motivo,
exerceria uma hegemonia natural sobre o econômico ou o espiritual. A
cultura, por sua vez, é vista como a expressão da vida popular,
dando uma idéia à política, com isso, de quais seriam as
aspirações verdadeiramente sociais.
Se acompanharmos a trajetória de Vargas pelos produtos culturais,
perceberemos que ele começa a aparecer nos jornais paulistas e
nacionais em 1927, quando se torna Ministro da Fazenda de Washington
Luis. Nas músicas, ele começa a aparecer quando se iniciam as
agitações relacionadas à sucessão presidencial, em torno de
1929/1930. A peça
Com Getúlio é na Batata, de Juracy
Vianna, é uma das primeiras manifestações teatrais em que
Vargas aparece - dentro do Arquivo Miroel Silveira, é a peça
mais recente que contém a figura do ex-presidente. A temática
desse teatro de revista é justamente a revolução que o levou ao
poder e a solicitação de censura da peça data de 08 de
Novembro de 1930 - apenas cinco dias depois, portanto, de Getúlio
ter assumido o governo provisório.
Nessa primeira manifestação teatral da figura de Getulio,
curiosamente, já encontramos uma série de construções
imagéticas que serão retomadas, posteriormente, por outros produtos
culturais que tratavam de fatos da carreira do ex-presidente. Ela é
claramente uma ode à Revolução de 30, comemorando, com humor
leve, alguns fatos que a desencadearam, com uma interpretação
própria. Uma das peculiaridades da apresentação é o fato de
que os quadros não estão preocupados em explicitar os interesses ou
conchavos políticos. Eles estão muito mais interessados em cantar
as mágoas das camadas médias e populares relacionadas à
República Velha - e, especialmente quanto a Washington Luis -
demonstrando grande esperança em uma possibilidade de
renovação. Com isso, ela contrasta da peça "Aluga-se um
Cavanhaque", produzida um mês depois, já que, através do uso
de alegorias, Frazão e Costa estão mais preocupados com os
bastidores políticos da revolução.
O primeiro quadro, por exemplo - chamado apenas de "scena primeira"
- fala sobre Washington Luis. Entre outras coisas, a política
econômica do último presidente oligarca é retratada,
ironicamente, nos seguintes termos: "Noutras terras, câmbio baixo/
Duras leis, crise que espanta/ Neste país apetecido/ O câmbio
sempre levanta".
Esses versos são uma referência à política financeira de
Washington Luis do ano de 1926. Nesse período, de fato, a taxa de
câmbio foi fixada em índices acima do mercado "com o objetivo de
favorecer as exportações e proteger a indústria nacional. A
decisão, porém, provocou forte reação negativa do comércio,
prejudicado com o encarecimento das importações" (MAYER, 2008).
Ora, as pessoas ligadas ao comércio interno, nessa época, apesar de
figurarem entre os setores médios da sociedade, eram também
consideradas como parte da "massa popular", por estarem excluídos
das decisões políticas e relegados a um papel econômico
menosprezado.
O que é mais interessante, porém, é que a orientação
econômica do governo Washington Luis já havia se modificado há
muito tempo. A polêmica em torno da economia se dava em outros termos
em 1929/1930: "Washington Luís decidiu manter uma taxa fixa de
câmbio para a moeda brasileira, fazendo com que a receita do setor
exportador acompanhasse a violenta queda dos preços do café"
(MAYER, 2008). Esse fato, porém, não é referido na peça. Ao
contrário da política econômica de 1926, isso afetava muito mais
os setores da oligarquia do que os setores médios e populares. A
mágoa demonstrada pelo antigo câmbio alto e a falta de
referências quanto às novas orientações econômicas são
bons indícios de quais tipos de setores sociais a peça voltava
sua atenção imediata.
Com Getúlio é na Batata também é muito mais
personalista do que
Aluga-se um cavanhaque. Enquanto esta se
utiliza de alegorias para explicar os fatos, a primeira não tem
pudores em louvar abertamente os homens-símbolos da Revolução
de 30: Getulio Vargas, Juarez Távora, Miguel Costa e João Pessoa
são tratados como heróis, como os homens que seriam responsáveis
por livrar o Brasil da "tirania do cavanha" (referência a
Washington Luís).
A personificação funciona como um legitimador do regime
recém-instalado. Curiosamente, porém, é justamente esse ponto
que a censura decide vetar. O censor determinou um corte na página 6
(na palavra "Baixignon Luís") e a modificação de todos os
nomes próprios. Como bem colocam as pesquisadoras do eixo temático
O Poder e a Fala na Cena Paulista:
Nesse intervalo, não é possível imaginar que o serviço de
censura paulista já estivesse estruturado de acordo com os interesses
do novo governo. (...) Essa providência revela que a
instituição, por meio da descontextualização, pretendia
instalar um distanciamento dos acontecimentos reais. A alteração
dos nomes próprios dificultaria a associação com os eventos
que, na peça, eram descritos humoristicamente, mas de modo a
ressaltar as qualidades dos vitoriosos e a criticar o antigo governo.
De qualquer modo, o efeito geral da ação censória se resume a
evitar problemas com quaisquer dos personagens citados na peça, que
eram nomes de peso da política derrotada e da política vitoriosa
(GOMES, 2008).
Além da intervenção da censura na peça, outro ponto que
gostaríamos de ressaltar é esse voto de confiança e esse apoio
imediato que grandes setores urbanos (e populares, inclusive), parecem
depositar nas propostas da Aliança Liberal e na figura de Getúlio
Vargas. Isso pode ser atestado tanto nas primeiras peças teatrais
que foram escritas sobre o tema, quanto quando observamos
manifestações em outros produtos culturais. Segundo Francisco
Weffort, a Aliança liberal "apresentava-se como um remanso
acolhedor para todos os descontentamentos e todas as esperanças. O
pobre, o milionário, o funcionário, o comunista, a feminista, todos
podiam confiar na serenidade de ação do candidato por ela
indicado" (RODRIGUES, 1965 apud WEFFORT, 2003: 74).
Corações Paulistas e Quem será o homem: Vargas quer continuar no poder
A marchinha vencedora do carnaval de 1937 cantava a seguinte estória
(no ritmo da canção "Terezinha de Jesus"): "A menina
presidência/ vai rifar seu coração/ E já tem três
pretendentes/ Todos três chapéus nas mãos/ (E quem será?)?".
Para responder a pergunta, o ritmo da música se intensifica "O homem
quem será/ Será seu Manduca ou será seu Vavá?/ Entre esses dois
meu coração balança porque/ na hora H quem vai ficar é seu
Gegê!".
A composição de Antônio Nássara e Cristovão de Alencar,
escrita antes do golpe do Estado Novo, brinca com as possibilidades de
eleição dos dois prováveis candidatos que disputariam o pleito
de 1938: Armando Salles de Oliveira (seu Manduca) e Oswaldo Aranha (seu
Vavá). Como uma espécie de previsão do que estava por vir, a
marchinha já adianta que quem vai ganhar o coração da menina
presidência é, na verdade, um candidato que nem concorreria às
eleições: Getulio Vargas. A música mostra como bem antes do
Golpe que instalaria o Estado Novo no país, as suspeitas dos desejos
de continuísmo varguista no poder já eram de conhecimento popular.
Além dessa, muitas outras representações do período brincavam
com os desejos continuístas de Vargas no poder através de
músicas, piadas e charges.
No período em que a peças foram encenadas, o país viva um
momento político delicado. Se por um lado, a Constituição de
1934 e a restituição da democracia no país (com o fim do
governo provisório) marcam o fim de uma série de disputas que
haviam se iniciado já em 30, por outro, uma série de medidas
tomadas pelo governo ameaçavam essa restituição democrática
e já deixavam entrever o radicalismo que dominaria o país nos anos
seguintes. Portanto, ao mesmo tempo em que um dos pontos cruciais da
política do período era manter a aura democrática, as medidas do
governo e de alguns grupos radicais (como a ANL e a AIB), muitas vezes,
se mostravam contraditórias a essa orientação.
Esse contexto político se projeta na ação da censura sobre a
peça
Corações Paulistas, de Adolpho Sampaio. Sua
censura se deu em Agosto de 1935, somente quatro meses, portanto,
depois da promulgação da Lei de Segurança Nacional (04 de
Abril de 1935). A peça é um drama em torno de uma família que
luta na revolução de 1932. Por trás do melodrama, a peça
é completamente marcada pelo imaginário heróico da luta
constitucionalista. Em um determinado ponto da peça, a palavra
"Getúlio" é proibida pela censura no trecho: "Thereza:
Graças a Deus que a Revolução acabou! / Pedro: é verdade.
Tinha que acabar mesmo. Eles não podiam comigo. O Getúlio
enviou-me um telegrama dizendo - chega! Entrego os pontos! És um
bicho!" No trecho transcrito, a censura ordenou que a palavra
"Getúlio" fosse substituída por "Catete".
Como já pudemos constatar pela nossa pesquisa até o momento, era
bastante comum o veto da censura à nomes de pessoas conhecidas e
influentes na esfera pública que aparecessem em peças teatrais
(especialmente quando elas eram tratadas de forma grosseira). Essa
orientação constava mesmo nos manuais que regiam o trabalho do
censor. Isso por si só, talvez já fosse um motivo mais do que
suficiente para que se desse o corte ao nome de Getulio Vargas. Mas nem
sempre os censores respeitavam estritamente essa regra. Isso se torna
ainda mais interessante no caso de Vargas, já que provavelmente ele
foi o político que mais apareceu em peças teatrais. Por isso,
mesmo que seja possível que o corte tenha se dado somente pelo fato
de o censor querer respeitar essa regra, investigaremos outros fatores
que podem ter influenciado na sua decisão.
O fato de o pano de fundo da peça ser a Revolução de 1932
parece ser um dos determinantes desse comportamento. Ora, a peça
seria encenada apenas três anos após o confronto, no Teatro
Municipal da cidade de São Paulo. O lugar e o tema eram suficientes
para despertar nos telespectadores sentimentos um tanto fortes: a
rememoração do que tinha, afinal de contas, originado o conflito
e do que o confronto havia custado para suas vidas. Apesar de ser um
consenso entre os historiadores de que o conflito foi motivado pelo
inconformismo da oligarquia paulista em ter perdido grande parte de sua
representação no poder central, a tônica propagandística da
revolução foi construída em outros termos: eram os temas da
autonomia, da constitucionalização do país e da superioridade
de São Paulo frente a outras regiões que moviam os "corações
paulistas". "O rádio - utilizado pela primeira vez em larga
escala no país -, a imprensa, os oradores inflamados contribuíram
para avolumar o ódio contra Getúlio, o execrável Gegê, ditador
que pisoteara São Paulo com as botas militares e traíra os ideais
democráticos" (FAUSTO, 2006: 63).
A censura de "
Corações Paulistas" se deu em Agosto de
1935. Ainda não havia acontecido, portanto, o fato que daria respaldo
ao estado de guerra e a justificação necessária para um uso
mais intenso de instrumentos autoritários: a Intentona Comunista (que
se daria em Novembro). O medo do comunismo ainda não havia encontrado
um ato suficientemente concreto para invadir de forma forte o
imaginário da população. Era necessário, portanto, manter a
aura democrática, apesar de diversos instrumentos autoritários já
estarem em ação. Mesmo após a Intentona (e até o início do
Estado Novo), o governo ainda teve alguns cuidados para não ser
identificado com uma ditadura ou com ações muito radicais na
esfera pública. Em 1936, por exemplo, quando o governo foi acusado de
maus tratos para com os prisioneiros, Vargas, contra todas as
evidências, dizia que:
Posso afirmar-vos que, até agora, todos os detidos são tratados
com benignidade, atitude essa contrastante com os processos de
violência que eles apregoam e sistematicamente praticam. Esse
procedimento magnânimo não traduz fraqueza. Pelo contrário, é
próprio dos fortes, que nunca se amesquinham na luta e sabem manter,
com igual inteireza, o destemor e o sentimento de justiça humana
(FAUSTO, 2006: 78)
E é em nome da manutenção da fachada democrática que o censor
pode ter considerado oportuno o corte do nome de Getulio. No caso de
Corações Paulistas, a rememoração do confronto de
32 apenas 3 anos depois de seu término (com o conseqüente despertar
de sentimentos em pessoas que haviam participado da luta por uma
Constituição) associada a um período histórico em que os
ideais democráticos estavam sendo deixados de lado, era uma mistura
perigosa. Substituir o nome de Vargas por "Catete", portanto, teria o
objetivo de manter a aura democrática, utilizando expressões que
lhe são próprias. A palavra "catete" iria evitar que se
configurasse a metonímia do autoritarismo: um homem tomado como todo
um governo.
Para Francisco Weffort, "a importância das formas democráticas
está em que legalizam, embora de maneira restrita, a possibilidade de
que as insatisfações populares alcancem, com certa autonomia, o
poder e interfiram em uma condição tão politicamente passiva
como a que se observa no período da ditadura" (WEFFORT, 2003:16). E
era exatamente isso que estava em jogo com a substituição da
palavra "Vargas" pela palavra "catete" em
Corações
Paulistas: manter a sensação de uma participação
democrática, enquanto os direitos civis iam, paulatinamente, sofrendo
reduções drásticas.
A interpretação de que o corte do nome de Getúlio não tenha
sido feita simplesmente por se tratar de um nome próprio encontra
respaldo se a compararmos com a atuação da censura em
Quem Será o Homem. Embora esse teatro de revista possua uma
cena em que Vargas mostra claramente querer continuar no poder
indefinidamente, a cena não é cortada.
Se compararmos as intervenções em
Corações
Paulistas e em
Quem será o homem? teremos alguns indícios
de um fato sobre a atuação da censura que já havia sido
apontado por alguns artistas teatrais, como Mário Lago. Segundo ele,
em entrevista concedida a Roseli Paulino (2001: 75-87), "podíamos
criticar a pessoa Getúlio Vargas, mas não podíamos criticar o
sistema Getúlio Vargas". Lago conta uma experiência própria:
Estreei uma peça em que fazia um quadro que era o malandro querendo
ensinar um golpe para o Getúlio. Toda aquela linguagem de malandro. E
dizia para o Getúlio: `Agora vou lhe ensinar um que não falha
nunca'. E Getúlio dava uma rasteira no malandro. `O senhor já
sabia, sua Excelência?'. E o personagem do Getúlio respondia:
`Faço isso desde criança, meu filho'. Isto
passou pela censura. No entanto, na história havia uma família que
atravessava a peça toda. O chefe da família tinha sido demitido.
E foi para a Justiça do Trabalho. Esta família fazia várias
entradas, e o tempo ia passando e eles iam envelhecendo e estavam
sempre entrando com recurso na Justiça. Isso não passou. Porque
criticava as leis trabalhistas, a Consolidação das Leis do
Trabalho. A censura era fundamentalmente neste aspecto. Você podia
interpretar o Getúlio passando uma rasteira, mas não podia
interpretar uma família que estava dependendo de uma solução da
Justiça, que não saía porque o patrão estava sempre
recorrendo (LAGO apud PAULINO, 2001: 75-87).
Parece que esse mesmo esquema de pensamento está envolvido na censura
das duas peças. Em
Quem Será o Homem, trata-se apenas
de um Getúlio Vargas malandro, esperto, algo direcionado para o
presidente enquanto pessoa. Vargas é colocado em meio a todo um
sistema político construído ao seu redor, confirmado através da
presença de outros nomes políticos aparecendo ao seu lado na
peça. Mesmo que ele lhes dê uma rasteira, é como se ele jogasse
com o sistema político, mas jamais questionasse a existência desse
sistema.
Já em
Corações Paulistas, quando Vargas é colocado
não somente como o centro das decisões, mas sim como a única
fonte delas, trata-se de outro problema: nega-se, com isso, a
existência própria de um sistema político estruturado
democraticamente. Daí a necessidade de se apagar a metonímia do
autoritarismo, daí a necessidade de corte de todos os vestígios de
sua presença.
Em uma época de double-bind democrático, você pode brincar com o
sistema político, mas, em momento algum, é permitido que você o
liquide. Não sem uma razão muito forte. Uma razão que seria
encontrada nos meses que se seguiriam, mas que, naquele momento,
deveria ser colocada em panos quentes.
Superando as diferenças em nome de ser brasileiro: peça amarga realidade
De acordo com Francisco Weffort, desde a década de 30, as massas
populares passaram a representar, de certa forma, o
"parceiro-fantasma" das relações políticas brasileiras. Era
em nome delas que os políticos diziam estar agindo, mantendo-as, ao
mesmo tempo, longe do processo político - numa espécie de
tentativa de barganha em torno da "interpretação legítima dos
interesses populares" (WEFFORT, 2003: 13). E é por isso que em todas
as crises "a intervenção do povo apareceu como possibilidade,
mas o jogo dos parceiros reais consistiu em avaliar, tacitamente, a
importância desta intervenção e em blefar sobre este
cálculo". O autor vai ainda mais além e afirma que o medo do
fantasma popular foi tão intenso que "em país algum ter-se-á
observado uma tão ansiosa busca de compromisso, até entre os grupos
políticos mais antagônicos, que evitasse a radicalização do
processo político e seu encaminhamento para soluções
surpreendentes" (WEFFORT, 2003: 13).
Desde o final dos anos 20, as massas já apareciam na esfera pública
relevante como um ator que deveria ser levado à sério. É o caso,
por exemplo, dos editoriais do Diário Nacional que criticavam o fato
de que "no Brasil os direitos do operariado ficam sempre no segundo
plano, (...) não tem sequer o direito de abrir a boca para
protestar" ou diziam que "o poder público atira cada vez mais o
proletariado para as esquerdas". O jornal O Estado de São Paulo
também percebe isso no mesmo período e "parece dar-se conta das
modificações existentes, que trazem um novo parceiro para a luta
política: uma `massa', ou `as massas', ou as `forças populares',
não definidas pelo jornal" (BORGES, 1979: 126).
Mas ao mesmo tempo em que essa massa passa a integrar a pauta da esfera
pública relevante, ela começa também a ser vista como um
elemento que necessita de uma tutela. Como explicita Borges, a respeito
de O ESP, "ora, o projeto elitista do jornal precisa de alguém que
imprima uma direção a essa `massa"' (BORGES, 1979:126).
Curiosamente, já em 1929, o jornal já apontava Vargas como um
provável tutor dos desesperançados.
Obviamente, durante esse período a imagem do político-tutor era
toda concentrada na figura de Vargas, era ele o responsável por
imprimir às massas uma direção. Mesmo nos demais níveis de
poder, "a consolidação do Estado Novo exigiu a construção
de um corpo burocrático, militar e político subserviente a Vargas e
desligado dos arroubos revolucionários dos primeiros anos. Eram
necessários `quadros' formados à
imagem e semelhança do
próprio Vargas" (Nosso Século, 1980: 183).
Essa imagem do político-tutor era muito bem combinada com outro
tipo de imagem, essa voltada não para o político, mas sim para a
massa: estamos falando de um tipo de nacionalismo que via o povo como
uma unidade, a partir da idéia mítica de "povo-comunidade",
apagando, com isso, os conflitos internos inerentes à prática
política:
Importa (...) observar que nesta ilusão de pura comunidade do povo
não há, nem pode haver, contradições antagônicas entre as
classes. O povo é percebido essencialmente como um conglomerado de
indivíduos que comungam este puro sentimento de `ser brasileiro'.
(...) Desnecessário dizer que aí está a justificativa
ideológica da prática nacionalista orientada pela busca constante
do compromisso e pela preocupação de evitar a todo custo as
situações de conflito (WEFFORT, 2003: 39).
Nessa conjuntura o político ideal deveria ser o "sintetizador dos
interesses coletivos, harmonizador e pacificador dos interesses de cada
membro que compõe a nação brasileira" (JAMBEIRO
et
alli, 2003). Em "Amarga Realidade", é exatamente esse mito de
união e aplainamento das diferenças que é evocado. Em uma cena,
a bandeira do Brasil se desdobra sobre as fotos dos dois candidatos que
disputariam o pleito eleitoral de 1945 (Eduardo Gomes e Eurico Gaspar
Dutra) e sobre a foto de Getulio Vargas. Nessa apoteótica cena que
encerra o segundo ato, fica bem claro o ideal de povo: uma grande
comunidade onde as lutas políticas e a agitação eleitoral não
seriam capazes, de maneira alguma, de obscurecer o grande sentimento de
"ser brasileiro" e "pertencer a uma nação".
Considerações finais
Para entendermos como foi construída a imagem de Getúlio Vargas no
teatro brasileiro, a partir do corpus proposto, precisamos delimitar
algumas variáveis. A primeira observação pertinente se refere
à natureza dessas peças. Como parece ter ficado evidente, como a
maior parte do acervo do arquivo Miroel Silveira, estamos falando sobre
obras que não fazem parte da grande cena teatral: são
apresentações populares, oriundas do teatro de revista, circos
teatros ou de grupos amadores. São peças que, de certa forma,
atendiam mais uma camada baixa e/ou média da população, do que
propriamente uma elite.
A temática do teatro popular é tão presente dentro do arquivo, que
existe todo um eixo temático dedicado exclusivamente ao estudo do
teatro amador. Era uma época em que o teatro não era uma coisa
destinada somente a membros de uma elite. Existia uma série de
lugares onde os baixos preços funcionavam como chamariz para as
classes populares. Daí a importância que:
o teatro amador possuía até a década de 70 na vida cotidiana dos
habitantes da cidade de São Paulo das mais diversas origens e
atividades. Crianças, artistas e educadores utilizavam e enxergavam
o teatro por ângulos diferentes, mas a catarse e ao mesmo tempo a
utilidade proporcionadas por essa atividade ocupavam lugar de destaque
no dia-a-dia destas pessoas. A configuração tomada pelo mapa,
com um centro abarrotado e locais ultrapassando as barreiras impostas
pela locomoção precária da época, demonstra a efervescência
e também esta importância visceral que mencionamos. O teatro estava
por toda parte, servindo aos mais diversos interesses e provocando o
mesmo arrebatamento em seus realizadores e observadores (YACUBIAN,
2007: 12-13).
Como bem coloca Paula Montero, sãs as classes populares a matéria
prima para a construção das nacionalidades nos Estados. "Com
efeito, embora esse tipo de estrutura burocrática se inaugure no
campo jurídico e da política, é no campo da cultura que ele ganha
espessura" (MONTERO, 1999: 03). O fato de que as peças analisadas
foram produzidas e tiveram como público alvo basicamente setores mais
populares e médios da sociedade nos interessa na medida em que nos
deparamos com a segunda questão que pode ser auferida das análises:
a constatação de que, em muitas dessas peças, a imagem
construída sobre a figura de Getúlio Vargas ou sobre os ideais da
nação se aproximam, diretamente, dos discursos oficiais.
Só para relembrarmos alguns tópicos, estamos nos referindo, por
exemplo, à celebração da Revolução de 30 feita pela
peça
Com Getúlio é na Batata, que se utiliza do
recurso de comemorar os feitos de seus principais líderes como forma
de legitimar o regime recém-instalado. Poderíamos citar também
o apagamento de interesses políticos conflitantes entre as camadas
sociais realizada em
Amarga Realidade.
Cabe aqui também relembrar que peças como as analisadas nesse
trabalho dificilmente receberiam algum tipo de incentivo financeiro
estatal ou uma atenção especial por parte do governo.
Retirando-se a possível interferência da censura - e aqui
estamos nos referindo à possibilidade de autocensura que, de qualquer
forma, dificilmente consegue ser empiricamente provada - estamos
trabalhando com discursos produzidos espontaneamente por seus autores.
Como explicar, então, essa identidade entre o discurso oficial e o
discurso veiculado por essas peças? Acreditamos que a resposta para
essa pergunta só pode ser obtida se analisarmos o processo de
formação dessas classes populares. É nesse ponto que está a
resposta sobre por que houve a adoção de um comportamento
populista das massas populares no período de 1930 a 1964. E é aí
que acreditamos estar também a resposta do por que as produções
culturais dessas massas refletiam esse comportamento.
Para entendermos essa formação, precisamos retomar um tema caro
à sociologia: como se deu o processo de massificação no Brasil.
Ora, assim como a emergência das massas políticas é um fenômeno
iniciado na década de 30, a massificação brasileira também
começa por essa época. O fato mais curioso que a envolve,
entretanto, é que, diferentemente do
processo de massificação europeu, a massificação brasileira
foi prematura: não caracterizada pela quebra de uma consciência de
classe (que, de qualquer forma, sequer se encontrava desenvolvida), mas
por uma incorporação aos setores urbanos de amplos contingentes
populacionais vindos do interior.
Outra particularidade desse processo é o de que, ao contrário de
reduzir a consciência política, a massificação brasileira
acabou por aumentá-la, já que a única possibilidade de
participação política das massas rurais estava quando elas se
incorporavam ao ambiente urbano, longe dos potentados rurais e do
coronelismo.
Vivíamos no Brasil dessa época um processo intenso de
urbanização e de modernização. As comunicações se
expandiam rapidamente, a industrialização dava seus primeiros
sinais de crescimento, os empregos urbanos cresciam cada vez mais e a
vinda de imigrantes rurais disponibilizava um maior número de pessoas
para a ação política. No momento em que as pessoas têm
liberdade para aderir às idéias de um ou de outro líder - já
que o contexto urbano em confronto com o ambiente rural propicia essa
escolha - é que se concebe que elas estão nas condições
efetivas desta disponibilidade política.
Mas isso não explica o problema todo. Uma vez em disponibilidade
política, as pessoas poderiam aderir a qualquer tipo de
liderança. As peculiaridades do processo de massificação
brasileiro por si não explica por que justamente o populismo parece
ter sido a forma política que caiu no agrado das massas, a ponto de
seus líderes conseguirem refletir alguns de seus pontos de vista em
produtos culturais produzidos espontaneamente. Analisaremos, então,
algumas outras condições materiais em que essa formação das
massas urbanas aconteceu.
Para Francisco Weffort, essa adesão das massas ao populismo pode ser
explicada, em grande medida, pelo fato de que "o processo de
formação das classes populares urbanas no Brasil se encontra
marcado por um amplo processo de mobilidade social" (WEFFORT, 2003:
165). Em outras palavras, o autor explica que as massas urbanas mais
importantes do ponto de vista político do período foram formadas
mais por pessoas que haviam subido de posição social (como
pessoas que haviam migrado do campo ou de cidades mais pobres ou a
partir da transferência de pessoas até então pertencentes aos
setores menos favorecidos) do que por pessoas que haviam entrado em
decadência financeira.
A importância desse fator pode ser melhor percebida quando evocada a
metáfora da Revolução Individual. Imprecisa como todo tipo de
metáfora, ela nos ajuda, porém, a entender o que significava uma
massa urbana formada por pessoas que, de certa forma, haviam melhorado
suas condições de vida nos últimos anos:
Como tentativa para explicar o comportamento populista da classe
operária industrial paulista, alguns intelectuais brasileiros dizem
por vezes que o operário já realizou, ao migrar do campo para a
cidade, uma `revolução individual' no seu estilo de vida, e por
esta razão, prefere optar entre alternativas políticas abertas pelo
grupo dominante, em vez de interessar-se em realizar ele próprio
uma `segunda' revolução. Enfim, ele não se encontraria, pelo
menos enquanto durem as condições que propiciaram sua
formação como classe, entre aqueles que `nada têm a perder'
(WEFFORT, 2003: 166).
O que está expresso nessas condições é o seguinte: para
Weffort, as classes populares urbanas, formadas nessas condições,
tendem a reconhecer e a legitimar os partidos e líderes ligados ao
status quo que, embora não tenham saído das classes
populares, conseguem dar voz e criar identificação com os
interesses populares de melhores condições para a
participação política e para a ascensão social. É como se
essas pessoas identificassem no
status quo quais são aqueles
líderes que "se solidarizam e promovem as condições da
ascensão" (WEFFORT, 2003: 176).
Os termos da contradição estão postos: as circunstâncias em
que se formam as classes populares e que as conduzem a esta identidade
são as mesmas que reafirmam, em vez de negar, seu caráter geral de
classes sociais dominadas nos quadros do desenvolvimento de um sistema
econômico e social baseado na desigualdade e na oposição de
interesses entre as classes. O que se afirma, portanto, em
circunstâncias históricas dadas, é uma ordem baseada na
desigualdade social, para ser aceitável por alguns setores das
classes dominadas (WEFFORT, 2003: 177).
É com base nessa formação popular que podemos entender por que
certos discursos e imagens que conseguimos identificar nas peças
analisadas se aproximam tanto do discurso oficial. Esse era de certa
forma o reconhecido como o melhor por amplos setores populares. Nenhuma
forma de dominação se mantém sem o reconhecimento por parte dos
dominados da legitimidade dos mandatos. As peças são mais alguns
documentos que atestam que existia uma boa dose dela no período.
A questão está longe de se esgotar por aqui. Notamos também nas
peças uma série de contradições e escapadelas desse
discurso oficial. Até mesmo isso parece estar relacionado com as
características próprias de formação das classes populares
urbanas. Estamos nos referindo ao fato de que a ascensão social a
qual nos referimos não estava relacionada com uma maior flexibilidade
das estruturas de classe. Em uma época de franca urbanização e
crescimento acelerado de empregos, havia sim uma melhora de vida, mas
essa não significava a ascensão para uma classe social mais
elevada. Desta forma, "a satisfação que se associa à
ascensão social de amplos setores populares urbanos tende a
acompanhar-se da insatisfação característica das
posições sociais alcançadas" (WEFFORT, 2003: 179).
Dessa forma, a formação contraditória dessas classes - "numa
palavra, a vitória individual traz em germe uma frustração
social" (WEFFORT, 2003: 183) - são também refletidas nos
produtos culturais que pessoas oriundas dessa formação produzem.
Eles conseguem aliar, contraditoriamente, uma identidade com o discurso
oficial combinada com reclamações e reformulações desse.
Por fim, as contradições existentes dentro das imagens
construídas nas peças (e que esperamos termos eficientemente
elencado aqui) são também uma prova de que a dominação e
manipulação populista nunca foram absolutas. O populismo foi de
fato um período marcado pela manipulação da emotividade, mas
foi também, uma forma de expressão das insatisfações
populares. Talvez a primeira forma que encontrou corpo em um país com
a formação do Brasil. Lado a lado, as peças demonstram quais
são os alcances e os limites dessa manipulação e dessa
expressão de insatisfações.
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- WEFFORT, Francisco. O Populismo na política brasileira. Rio
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Footnotes:
1Graduanda
em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pela
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e
Bolsista de Iniciação Científica do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Desenvolve o trabalho
junto ao projeto temático A Cena Paulista: um estudo
da produção cultural de São Paulo a partir do Arquivo Miroel
Silveira no eixo temático O Poder e a
Fala na Cena Paulista , sob orientação da Profa.
Dra. Mayra Rodrigues Gomes.