A Estrela (De)Cadente: uma breve história da opinião
pública
Samuel Mateus1
2008
A centralidade da opinião pública no pensamento social e político
faz dela um valor simbólico fundamental das sociedades. Com efeito,
ela serviu para fundamentar revoluções, movimentos democráticos
ou apoiar regimes totalitários. Napoleão, por exemplo,
considerava-a "um poder invisível e misterioso ao qual nada
resiste; nada é mais mutável, mais vago ou mais forte; e mesmo que
caprichosa ela, porém, é justa bastante mais frequentemente do que
pensamos" (Napoleão
apud Le Bon, 1918: 163).
A opinião pública emergiu encarnando os ideais mais genuínos de
uma publicidade crítica exercida por um público no contexto de uma
economia liberal e de uma sociedade dominada pela burguesia. O
revestimento ético-moral da opinião pública advém do papel
político que a esfera pública assumiu e da forma como é
desempenhada essa tarefa. A função política revela-se na
exigência não só de legitimidade colocada ao poder político,
como também de participação nesse exercício. A opinião
pública é filha da razão e expressa-se enquanto vontade
colectiva através dos debates de ideias, da liberdade de expressão
do pensamento, liberdade de associação e, sobretudo, da liberdade
de imprensa. É, portanto, o seu carácter racional e a sua forma
comunicacional que formam os pilares do sentido moral e ético da
opinião pública (Pissarra Esteves, 2003: 198-202).
Com este artigo pretendemos percorrer não apenas o caminho da
consagração mas, também, o trajecto da descaracterização
da opinião pública demonstrando a sua mutação. Introduzimos a
discussão sobre o declínio de uma publicidade crítica, mas
sobretudo perspectivamos as transformações ocorridas nas
sociedades ocidentais nalguns dos seus mais basilares mecanismos e que
dão origem a entendimentos paralelos da publicidade.
Comecemos pela teorização substantivista da opinião pública
respeitante à relação entre público e Estado.
Concepção Substantivista da Opinião Pública
Ainda que apenas no Séc. XVIII se tenha utilizado a expressão
opinião pública no âmbito da discussão filosófica de
democracia parlamentar, muitas outras expressões foram usadas com
objectivos afins aos cristalizados no conceito
2. Os
seus atributos parecem poder ser extrapolados para períodos temporais
e contextos sociais outros que não os da esfera pública burguesa,
possibilitando a universalização do conceito de opinião
pública. Margaret Mead (1965), por exemplo, descreve mecanismos
antropológicos de interacção colectiva nos quais se podem
reconhecer os princípios gerais do processo de opinião
pública
3. Isso significa
que a operacionalização burguesa do conceito é apenas uma de
entre as possíveis. Naturalmente esta ideia é susceptível à
crítica na medida em que isso significaria uma transformação
substancial do significado da esfera pública (Habermas, 1992,
462-463).
Não obstante a hipótese de uma universalização conceptual e
temporal da opinião pública, esta foi invocada com persistência
de maneira muito precisa, no contexto da esfera pública burguesa e de
sociedades liberais de pendor democrático. O modelo liberal constitui
o primeiro grande entendimento de opinião pública concebida de
forma substantivada: uma Opinião Pública maiúscula, instância
entre a sociedade civil e o Estado. A tradição
liberal
4 defenderá e articulará o regime da opinião
face ao regime da autoridade do despotismo ilustrado. A opinião
pública liberal assenta em duas dimensões: a política e a
económica.
O liberalismo político sintetiza-se no artigo 1
da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de
1789: "Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos" e
inclui o princípio da igualdade, das liberdades civis
5 (inviolabilidade do domicílio, direito a uma educação, entre
muitas outras) e das liberdades públicas (liberdade de imprensa,
liberdade de expressão e associação). Ele distingue-se pela
insistência na vigilância das actividades governamentais pelas
instituições por intermédio da doutrina de separação dos
poderes, de Montesquieu (poder executivo, legislativo e judical).
Essencial para a concepção liberal de opinião pública, o
pluralismo político defende a existência de uma arena pública
onde diferentes correntes de opinião se possam defrontar através da
criação de associações.
O liberalismo económico condensa-se na máxima "
laissez
faire, laissez passer, le monde va de lui même" que não significa
mais do que a liberdade de comércio e de produção. Estas
liberdades apoiam-se não apenas na propriedade privada, como na
liberdade de empresa e na lei de mercado, em que é a oferta e a
procura a regular o mercado, e onde o Estado não deve intervir. Na
formulação liberal encontra-se reduzido a garantir o
cumprimento destes princípios e a assegurar a ordem pública.
Esta breve caracterização das teses liberais é relevante para
perceber que a opinião pública liberal (burguesa) se constitui como
força moral e crítica sobre a sociedade e o Estado ou qualquer
outro poder em geral. A opinião pública política fundamenta-se
na esfera privada, mais propriamente na sociedade civil, e é
constituída pelos indivíduos particulares reunidos em público que
fazem ouvir a sua voz através de uma comunicação política
expressa como opinião pública, tida esta como produto do
raciocínio público sobre os assuntos públicos. Dado que cada um
possui a sua aspiração privada, é na defesa dos
interesses de cada um que publicamente se pode atingir a harmonia e o
bem-estar social. O seu pressuposto é que somente do diálogo e do
debate públicos pode a verdade assomar aos homens e guiar os
cidadãos na identificação e no solucionamento dos problemas da
sociedade. A opinião pública surge de uma reabilitação
pública da
doxa na medida em que, erigida em fundamento de
legitimidade da acção governamental, requer que a opinião de
cada subjectividade seja considerada igual perante todas as restantes.
A teoria liberal da opinião pública é uma teoria do público e
da sua liberdade constitutiva em expressar os seus pontos de vista, em
discutir os temas e em avaliar criticamente os actos do poder
político.
A principal metáfora liberal sobre a opinião pública é a do
tribunal. A opinião pública constitui-se em tribunal de razão
cuja tarefa consiste em vigiar e apreciar o poder político com o
objectivo de obstar a sua disfuncionalização e impedir uma
governação alheia aos seus interesses. Para Jeremy Bentham, o
público compõe um tribunal que é mais poderoso do que todos os
outros, é incorruptível e tende a iluminar os homens. A publicidade
governamental contribuirá, então, para a melhoria da razão e do
discurso públicos e prevenirá a corrupção. O tribunal que a
opinião pública constitui permitirá, também, aos eleitores
agirem com competência na escolha dos seus representantes (Cutler,
1999: 325). A sua consecução depende, por isso, de uma imprensa
crítica que torne públicas as decisões governamentais de modo a
facilitar o debate público, já que "o segredo nos assuntos supõe
a tirania dos governantes" (Bentham, 1821). Com efeito, o editor do
jornal actua como uma espécie de juiz e tão fundamental é o seu
papel que é considerado como a figura mais importante da vida
política a seguir ao primeiro-ministro. Como nota Tocqueville, a
imprensa é "o olhar que traz à luz os segredos da política e
força os homens públicos a comparecer perante o tribunal da
opinião" (Tocqueville, 1981: 271). O tribunal da opinião
pública
constitui, não só o mais seguro dispositivo
contra a ameaça da corrupção pública, como igualmente
assume a realização da ética utilitarista. O tribunal é
"para o exercício pernicioso do poder governamental a única medida
(
check); para o exercício benéfico, um suplemento
indispensável. Os governantes competentes seguem-no; os néscios
ignoram-no. No presente estádio da civilização, os seus
ditames coincidem, na maior parte dos casos, com o princípio da maior
felicidade" (
greatest happiness principle) (Bentham, 1983:
36). Bentham defendia, assim, numa enunciação progressista, uma
opinião pública de acordo com o imperativo ético utilitarista: "
a maior felicidade para o maior número de pessoas". Quatro
funções são incumbidas ao Tribunal da Opinião Pública: uma
função de esclarecimento oferecendo informação ao
público, uma função censora em que avalia os assuntos
públicos, uma função executiva em que recompensa ou pune as
acções públicas, e, por fim, uma função terapêutica
propondo directrizes na definição dos projectos (
idem:
37-39). A função censora é a mais pregnante das dimensões
de que a opinião pública se revestiu entendida como tribunal.
Jean-Jacques Rosseau descreve um censor com o propósito de
fortalecer a opinião pública como a guardiã da moralidade
pública. "Do mesmo modo que a declaração da vontade geral se
processa na lei, a declaração do julgamento público
realiza-se na censura; a opinião pública é o espaço da lei
cujo censor é o ministro (...)" (Rosseau, 1966: 168). "A
censura preserva os costumes e a moral prevenindo as opiniões de se
corromperem através de intervenções razoáveis, algumas vezes
mesmo, fixando-as quando ainda não estão definidas"
(
idem: 169). A opinião pública possui, no fundo, o dever
de impelir os governantes a desempenharem os seus cargos com
responsabilidade fazendo-lhes chegar os desejos dos cidadãos.
Assim, ela assegura a confiança dos governados bem como o seu
assentimento e anuência às medidas legislativas. Nesta medida, a
opinião pública de Bentham, mais do que uma força de pressão,
erige-se como elemento do aparelho político de governação.
Verificamos que o tribunal que Bentham descreve inverte o princípio da
sua prisão panóptica: se o olhar do guarda pode ver os seus
prisioneiros, agora, é o público que pode observar - e verificar
- os membros da governação. É a acessibilidade e a
visibilidade do governo, enquanto dispositivos de controlo da sua
actividade, que permitem uma publicidade que assegura a confiança
do público nas decisões políticas. Como é claro, a metáfora
da opinião pública como tribunal vai beber inspiração, nos
seus traços gerais, ao princípio de publicidade kantiano que faz
do esclarecimento e da visibilidade dos assuntos públicos a
condição incontornável da justiça. Contudo, e ao contário
de Kant, se o entendimento benthamniano da publicidade faz da
visibilidade e acessibilidade as condições de um eficiente
controlo sobre as elites do poder, o debate racional possui uma
importância marginal e o carácter crítico da publicidade é
secundário.
Se quiséssemos aplicar uma distinção entre teorias da opinião
pública, poderíamos afirmar que o entendimento liberal se posta do
lado das teorias substantivistas da opinião pública (Splichal,
1999: 2), isto é, uma formulação político-normativa de
contornos ético-morais que faz da opinião pública um
instrumento do público na condução dos assuntos políticos.
Ela assume-se especificamente logomáquica, isto é, como uma justa
de opiniões sustentadas que pelo seu carácter polémico configuram
a positividade e a negatividade da opinião pública. Neste caso a
opinião pública é a opinião do público.
Concepção Adjectivista da Opinião Pública
Abordemos a opinião pública a partir da sua constituição
adjectivista, a qual consagra, na primeira metade do séc. XX, a
passagem do público como órgão substantivo para designar, antes,
a qualidade da opinião, isto é, uma opinião que é publicada mas
que não é (necessariamente) pública.
A teorização de Ferdinand Tönnies é relevante no que concerne
a estabelecer um compromisso entre a concepção substantivista e
adjectivista, pois, ainda que não ignore a dimensão ética da
opinião pública, é sensível à distinção entre opinião
pública e opinião publicada o que faz dele um precursor da
teorização da opinião pública na sua relação com os
dispositivos tecnológicos de mediação simbólica.
A teoria crítica da opinião pública de Tönnies exposta, em 1922,
na
Kritik der öffentlichen Meinung, é uma das mais
significantes contribuições para a teoria social clássica e
configura-se num esforço sistemático de fazer da opinião
pública uma componente essencial dos processos sociais e culturais.
Rejeitando a tradição psico-social que se desenvolveu a partir
dos anos 30 do séc. XX, Tönnies abandona uma concepção
restrita e espacial da opinião pública. Tal como para Tarde (1991:
11), o público é uma forma de reunião intelectual na qual os seus
membros partilham ideias sem que interajam directamente. A
espacialidade não é, aqui, o factor determinante.
O autor de
Kritik der öffentlichen Meinung integra na sua
teorização as ideias de racionalidade e moralidade tal como
postuladas pela abordagem filosófico-normativa. A moralidade
manifesta-se no comportamento do público e providencia a base sobre
a qual as relações sociais podem ser construídas. A
racionalidade advém do facto do seu pensamento se basear numa
abstracção intelectual da opinião pública que não existe em
concreto, mas que funciona como uma ferramenta no inquérito das
manifestações histórico-culturais das sociedades. Ela
resulta, em especial, do facto da opinião pública não ser
compelida por aspectos externos (como por exemplo, o dinheiro) mas
somente norteada pelo esclarecimento e pela ilustração, algo que
a faz deter um elevado grau de validade normativa e de juízo moral
(Splichal e Hardt, 2000: 50). A opinião pública é, então,
concebida como uma forma de vontade social de produção de
conhecimento por intermédio de uma vontade unânime que existe na
Gesellshaft (Sociedade) em associação como outras duas
formas de vontade social complexa, a convenção e a
legislação, e opera um papel semelhante ao da religião no seio
da
Gemeinshaft (Comunidade).
Demitimo-nos de proceder a aprofundamentos da obra de Tönnies para
salientar, antes, os aspectos mais relevantes das subtilezas que a
opinião pública pode aparentar e que denunciam já o germe de
transformação que ela viria a sofrer nos finais do séc. XIX, e
nos princípios do séc. XX. Na sua obra de 1922, Tönnies
estabelece três diferentes sentidos para a opinião pública:
die Öffentliche Meinung,
eine öffentliche
Meinung, e
öffentliche Meinung, respectivamente, opinião
do público, opinião pública e opinião publicada.
A opinião do público (
die Öffentliche Meinung) é a
opinião pública crítico-racional, efeito da discussão do
público. Trata-se de um acordo unânime da opinião dos
cidadãos desenvolvido pelo razoamento independente de cada um que
culmina num acordo universal atingido através do consenso de
razoabilidade da maioria. Apenas os cidadãos eruditos são
susceptíveis de participar nesse processo de formação da
opinião. O sujeito da opinião do público configura "um público
essencial e politicamente harmonioso que concordou opinar e ajuizar de
um modo particular e que, portanto, pertence naturalmente à vida
pública... A opinião do público é essencialmente uma
vontade expressa num juízo e pela avaliação - como um acto
coeso - e, por isso, é uma consciente e manifesta forma da vontade
no sentido de uma deliberação ou avaliação judicial por
qualquer outro órgão decisional" (Tönnies
apud Splichal
e Hardt, 2000: 75).
Estamos perante uma Opinião Pública em maiúsculas, símbolo maior
da racionalidade e do uso público da razão, força unitária e
expressão da vontade comum, na qual as afinidades electivas, ou seja,
a conexão espiritual ao nível das ideias, são preferidas a
desfavor de uma conexão espacial.
A Opinião Pública (
eine öffentliche Meinung) nomeia um
conglomerado de perspectivas, desejos, intenções e opiniões
contrárias - e controversas) em confronto na esfera pública,
degladiando-se por atraírem a atenção do público de modo a
que se transforme na opinião do público
(die Öffentliche
Meinung). Contudo, sem a força centrípeta do público que une e
torna coesas as opiniões transformando-as numa unidade de vontade,
a Opinião Pública, no sentido de Tönnies, não passa de um
estádio intermédio entre a opinião do público e a opinião
publicada.
A opinião publicada (
öffentliche Meinung) consiste, por seu
turno, na divulgação social de uma opinião que por essa
circunstância se torna a opinião de muitos, espécie de ideia
estandardizada que se oferece à partilha sem que de desenvolva um
ajuízamento e uma forma transversal de formação de opinião.
Concerne uma opinião individual expressa publicamente, destinada a
nenhum receptor particular e diferencia-se de uma opinião privada
porque a sua concepção é dirigida à publicidade.
Estas acepções revelam os processos de formação modernos da
opinião pública e desenham-no como uma acção fluida e
dinâmica iniciada individualmente mas concluída colectivamente em
que de uma opinião vulgar, transitória e indefinida se atinge a
unificação da vontade de uma sociedade em torno de fins
consensuais. O contraditório que se gera, num estádio intermédio,
contribui, assim, para a consolidação e solidificação da
opinião que diversamente alimentada se constitui não apenas com um
nível elevado de acordo, como também, com um agudo sentido de
pluralidade. Na dependência dessa fluidez processual surgem diversos
estados de agregação da opinião pública identificados com uma
analogia termo-dinâmica da Física. "Tönnies toma de
empréstimo uma metáfora da Física para afirmar que o
momentum da opinião do público é determinado pela massa
e velocidade - o poder da opinião do público depende do grau de
solidez e energia que coloca em movimento uma opinião, no grau
proporcional ao grau de unanimidade e intensidade da vontade"
(
idem: 89). A opinião pública pode, pois, viajar de uma
convicção sólida, a uma proposta líquida, até a uma ideia
gasosa, onde a instabilidade é a sua característica
principal
6.
A solidez da opinião pública é explícita no acordo geral acerca
de valores inalienáveis, como a liberdade. A fluidez é patente em
assuntos controversos e com interesses repartidos em que a opinião
pública se demonstra imparcial. O estado gasoso da opinião
pública ilustra a sua dinâmica mutacional e a sua vitalidade na
convocação de assuntos e temas problemáticos que carecem de uma
resposta, ou pelo menos, de uma tomada de posição da sociedade.
Há, pois, uma circulação muito viva nos três estádios em
que a opinião pública se movimenta: desde uma erosão da
convicção até a uma construção inabalável dessa
crença. A intensidade desta efervescência revela a capacidade
problematizadora da sociedade e a existência de um público activo e
vigilante que exercendo a sua razão se agita nas certezas
fundamentais. A espontaneidade da formação da opinião pública
descoberta nestes três estádios asserta que a experiência
pública se mantém atento às inquietações sociais.
A opinião publicada é a pré-categoria da opinião pública que
se nos afigura mais fértil em interrogar, já que permite
começar a pensar numa opinião pública sem maiúsculas, e sem a
unidade normativa, como é exemplo a opinião do público. Na medida
em que as opiniões começam a aflorar na publicidade e se
desenvolvem os dispositivos tecnológicos de mediação
simbólica, a opinião pública, no seu sentido
crítico-racional, viu-se ameaçada, ao longo do séc. XX, por
uma profusão de perspectivas que, dada a sua quantidade, fizeram
perigar a sua qualidade. Para isso contribui decididamente os processos
dinâmicos de formação dessa opinião pública esclarecida.
O Declínio da Opinião Pública
Os supra-referidos estádios atestam a falência de um certo
entendimento liberal da opinião pública e que nos cabe aqui expor
em síntese.
Os liberais defendiam uma opinião estática e imutável que apoiaria
os modos de pensar dos cidadãos. Na verdade, a opinião pública
é o domínio, por excelência, de avanços e retrocessos, em que
a verdade não é somente um objecto velado que nos cabe aclarar e
desocultar publicamente. Ao contrário do "racionalismo optimista"
liberal, a verdade é apenas o pretexto que a opinião pública
encontra para tecer o seu pensamento e delinear um projecto. "Embora a
procura da verdade através da discussão racional livre seja um
assunto público, não é a opinião pública (seja o que isso
for) que é o seu desiderato. Ainda que a opinião pública possa
ser influenciada pela ciência e possa julgar a ciência, não é o
produto de uma discussão científica" (Popper, 1968: 352).
As três derivas de opinião pública de Tönnies permitem-nos
perceber claramente que existe nela duas existências: uma
institucionalizada, como por exemplo, a opinião do público
(
die Öffentliche Meinung), e uma não-institucionalizada,
a opinião publicada (
öffentliche Meinung), e a opinião
pública (
eine öffentliche Meinung). Para além das arenas
convencionadas, há muitas outras, informais, triviais e quotidianas,
onde cada indivíduo expressa a sua opinião. Este conjunto de
opiniões poderão, eventualmente, formar uma opinião pública do
público mas, em si, formam opiniões públicas em potência (sem
por isso serem menos relevantes no domínio da publicidade). O
pensamento dialógico do "eu creio que ele crê em..." é uma
das formas fundamentais de criar opinião pública ainda que
careça desse valor normativo da opinião pública do público.
Este carácter dialógico repele o mito liberal de uma opinião
monolítica (Rosenbaum, 1975: 131), expressão de uma vontade geral
rosseauniana. A pressuposição de um consenso na opinião do
público (
die Öffentliche Meinung) não elimina o facto de
que a formação de opinião passa por vários estágios,
antitéticos e contraditórios entre si, em que a opinião não é
homogeneamente vinculativa, e onde se concorre com vários pontos de
vista que originarão graus variáveis de adesão (cf. Bourdieu,
1972: 222). Devemos, pois, ver uma opinião caleidoscópica, prisma
que refracta e simultaneamente reflecte os raios de luz de cada
subjectividade. O pensamento de Tönnies acerca da opinião pública
é, deste modo, ambivalente: ao mesmo tempo que a concebe em moldes
normativos, possui a argúcia de espírito para identificar alguns
aspectos que permitem pensar, não apenas nas fragilidades do modelo
liberal, como numa erosão normativa da opinião pública que se
exacerbará ao longo do séc. XX.
A Opinião Pública Contemporânea
As Contradições Interna e Externa
Ora é na confluência do passado e do presente que encontramos a
opinião pública hodiernamente reinante. Ela debate-se, como
tantas outras formulações das ciências sociais e humanas, entre
o ser e o dever ser, entre a ideologia e a utopia, entre a
quantificação e a qualificação. A opinião pública
submete-se a criticismos e é, na actualidade, um conceito de
contornos difusos e fluidos, hidra de mil-cabeças capaz de
apresentar diversas formas. A tal ponto, dir-se-ia, que apenas pela
conjugação das diversas acepções numa família semântica
se poderia, a bom rigor, aproximarmo-nos da sua definição.
A controvérsia na sua clarificação advém, sobretudo, das
contradições que a expressão
opinião pública tenta
redimir.
Ao nível de uma contradição interna, a opinião pública
depara-se com uma dissensão semântica porque valoriza ao mesmo
tempo dois pólos antagónicos entre si, a opinião e o público. A
opinião (
opinio) aponta para uma unidade de conhecimento
individual, enquanto o público denota uma unidade sintética de
múltiplas opiniões individuais. A contradição interna da
expressão "opinião pública" mascara, assim, a tensão
primordial entre o singular e o plural, entre aquilo que é próprio
(
idion) e aquilo que é comum (
koinon), se
quisermos, entre um princípio individual e um princípio colectivo.
A opinião (
doxa) é, desde o pensamento grego clássico, o
eco da subjectividade dos seres humanos. O termo opinião no idioma
alemão (
Meinung) não esconde que é um facto meu
(
meine), isto é, que pertence, em exclusivo, a cada um.
Ferdinand Tönnies identifica mesmo a actividade de opinar
(
Meinen) com o pensar (
Denken) (Tönnies, 2000:
117). Já o público é compreendido como o oposto da opinião: ele
implica a presença de um conjunto de pessoas que se reúnem entre
si e em que os traços idiossincráticos permanecem elididos a
favor de aspectos essenciais que preenchem a identidade comum. Existe,
portanto, no núcleo da opinião pública, um confronto de
tendências conflituantes que provocam, desde o séc. XVIII, uma
oscilação de enunciações em torno dos aspectos holísticos
(colocando a ênfase na esfera colectiva
7), e dos aspectos particularistas
(atribuindo destaque à componente individual) (Price, 1992: 2).
Mas encontramos igualmente uma contradição externa que se realiza
entre os sujeitos da opinião pública e os sujeitos a quem ela é
dirigida, entre a expressão e a realização da opinião
pública. Com o advento dos dispositivos tecnológicos de
mediação simbólica essa contradição agudizou-se.
"Ainda que o público fosse compreendido como o fundamento normativo
da democracia, na medida em que o forum público foi moldado através
da discussão crítica sobre os assuntos públicos pela
educação e pelo cultivo individual, os modernos
mass
media criaram um novo tipo de público despolitizado e independente
da participação no processo de tomada de decisão" (Splichal,
1999: 51).
Com efeito, a opinião pública contemporânea resulta não só da
falência do modelo liberal como também de circunstâncias e
factores característicos do desenvolvimento das nossas sociedades, de
que destacamos, a democracia de massa, e o incremento dos fluxos
comunicacionais sofrido com o desenvolvimento medialógico dos
dispositivos tecnológicos de mediação simbólica. Ao perder os
atributos próprios da publicidade crítica, e pelo facto de que a
expressão de opinião foi substituída pela apresentação da
opinião, fala-se hoje na sua dissolução.
A Opinião Pública Estatística da Sociedade de Massa
O crescimento demográfico e o sufrágio universal, com a concomitante
expansão das liberdades e direitos individuais entrecruzam-se
intimamente com a opinião pública ao ponto de se afirmar que se
trata de uma "opinião de massa", constituída já não
"verdadeiramente por públicos, como em épocas anteriores, mas sim
por esta nova sociabilidade a que damos o nome de massa, formas de
agregação social dos indivíduos que tem por base relações
sociais frágeis, superficiais e burocratizadas" (Pissarra Esteves,
S/D). Os públicos não se extinguem; no entanto, perdem a sua
eficácia simbólica o que corresponde a uma profunda alteração
dos padrões de participação, os quais limitam as
subjectividades e impedem a discursivização argumentativa
agonística levando o indivíduo e o cidadão à indiferença,
ao amorfismo e à interpretação dos assuntos apoiada em aspectos
apolíticos e acríticos. "Se não há verdadeiros sujeitos na
massa, então não há também lugar para falarmos em direitos, em
obrigações, ou responsabilidades; tudo o que conferia uma
espessura ético-moral à opinião pública se desvanece na massa
surgindo em seu lugar um território politicamente pantanoso mas muito
propício para a manobra de certos (e poderosos) interesses
particulares organizados" (
idem). O público perde, por
isso, a sua perfomatividade característica como espaço
comunicacional e a opinião pública pauperiza-se. Os dispositivos
tecnológicos de mediação simbólica apropriam-se do
enfraquecimento dos públicos e tomam para si certas prerrogativas,
entre as quais o papel de discussão política - que, em conjunto
com a emergência do Estado-Providência, faz da opinião
pública um "acondicionamento funcional" com vista a processar a
legitimidade das decisões políticas. A opinião pública foi
anexada ao funcionamento estatal
8 e, sob a forma de sondagens e
inquéritos de opinião (particularmente atractiva ao funcionamento
dos dispositivos tecnológicos de mediação simbólica),
funciona como instrumento da acção política cuja função
passa por construir a ideia de que existe uma opinião pública
unânime, e "[quer] impor a ilusão de que existe uma opinião
pública como somatório puramente aditivo das opiniões
individuais, [quer a ilusão] de que existe algo como a média das
opiniões ou a opinião média" (Bourdieu, 1972: 224). Porém,
como massa, o indivíduo é incapaz de se colocar criticamente no
papel de agente enunciador de opinião
9. A opinião pública não passa disso mesmo;
de uma opinião. Uma opinião de maioria formulada por uma maioria e
para uma massa. Tocqueville havia já percebido os efeitos perniciosos
da massa cuja opinião não nasce da persuasão mas da
imposição, quando falava da comutação do reino da crítica
pelo da opinião (Tocqueville, 1981: 17). Mill sentia a mesma
inquietação que Tocqueville quando criticava a esfera pública
de, dominada pela multidão, ser incapaz de dar racionalidade às
suas deliberações. " Os indivíduos estão, no presente,
perdidos na multidão. Em política é quase uma trivialidade dizer
que a opinião pública rege o mundo. O único poder merecedor esse
nome é o das massas, e dos governos quando se fazem o órgão das
tendências instintos das massas. Isto é verdade tanto nas
relações morais e sociais da vida privada como nos negócios
públicos" (Mill, 1909: 41).
A opinião pública é imposta por outros. Porque ao indivíduo
mancam as condições que lhe permitem constituir como políticas
as questões e de lhes aplicar as categorias políticas. "O mundo da
política está fora de alcance, longe da vista e fora da mente. Tem
de ser explorado, anunciado e imaginado (...) Aquelas imagens,
pelas quais grupos de pessoas ou indivíduos agindo em nome dos
grupos, constituem a Opinião Pública em letras maiúsculas"
(Lippman, 2004: 16). A produção técnica de opinião pública
em que consistem as sondagens de opinião culmina na inversão da
relação Estado e opinião pública: já não é a opinião
pública a nortear a acção estatal, é o Estado a controlar a
produção de opinião pública que deixa de ser uma
produção crítico-racional
10 para ser uma produção técnica
alicerçada estatisticamente, confundindo-se os planos
quantitativo e qualitativo. Uma opinião pública industrialmente
produzida baseada numa "ficção estatística" (
idem)
já não tem poder vinculativo porque os indivíduos valem apenas
enquanto número, entidade aritmética e abstracta, sem identidade.
As sondagens colocam entre parênteses o estatuto dos indivíduos;
mais, retiram-lhes a sua subjectividade e simplificando o
raciocínio político em dicotomias estéreis. A opinião
torna-se, assim, um recurso de mercado, e a lógica económica
capitalista de sobrepor a quantidade à qualidade, estende-se até
ao domínio da publicidade e da política. Com efeito, "a forma
abstracta da mercadoria destinada a converter-se em valor puro de
troca acaba por subordinar todas as restantes dimensões sociais
(...). É neste contexto que o espaço público se autonomiza
e se transforma de modo a garantir a circulação generalizada,
como campo generalizado da publicidade dos produtos. Deste modo, a
imprensa, de veículo da opinião publicamente produzida nos
espaços de debate e convívio, torna-se pouco a pouco
produção de opinião, substituindo-se, assim, ao trabalho de
produção colectiva que orientava o projecto iluminista (...)
(Rodrigues 1990: 41). O público transmuta-se em objecto de
discurso.
Desse modo, os meios da comunicação pública são insuficientes
para o comprometimento político (Dewey, 1927: 181). A opinião
publica é, antes de mais, uma construção e uma
mise en
représentation que se interpõe entre os cidadãos e os aparelhos
político-informacionais. A opinião é apenas um corte
técnico-estatistico desenhado com laivos de uma análise
psico-sociológica presa à observação de atitudes tomadas
como unidades mínimas de significação. "A opinião pública
torna-se o rótulo de uma análise sócio-psicológica de
processos grupais (...); o público compara-se à "massa",
depois ao grupo, como o substrato sócio-psicológico de um
processo comunicativo e interactivo entre dois ou mais indivíduos"
(Habermas, 1991: 241). A psicoligização do público levada a
cabo pelas sondagens de opinião transforma a opinião pública numa
mera alusão a um processo de comunicação colectiva, e
restringe-a a um agregado de respostas anónimas de indivíduos
isolados a um conjunto de questões arbitrariamente definidas. Neste
modelo behaviouristico, todos os atributos da opinião pública do
séc. XVIII são excluídos, nomeadamente e sobretudo, a
formação de um consenso da cidadania pela discussão pública.
O problema coloca-se agora ao nível das funções específicas
da comunicação - pública e política - e o papel do
Estado e instituições na realização da opinião
pública.
As sondagens que estão na origem moderna da opinião pública podem
ser sintetizadas como instrumentos políticos de obnubilação e
sentenciadores de posições, mais do que produções
discursivas do público. " Através da multiplicidade de lugares que
pode ocupar no discurso e da flutuação das suas figuras
narrativas e dos seus efeitos de sentido, a opinião pública é
mais uma entidade inserida numa estratégia de legitimação e
contralegitimação, uma arma de mobilização política do
que um conceito científico ou um instrumento de análise da
realidade social" (Rodrigues, 1988: 39). O público, enquanto
categoria de juízo crítico não produz uma opinião avalizada.
Por isso Bourdieu (1972) acredita que a opinião não existe e
denuncia, mesmo, alguns pressupostos frágeis do modelo liberal de
opinião pública. Três postulados sofismáticos são
denunciados
11: a opinião pública tecnicamente produzida tem
implícito que todos podem ter uma opinião e que esta está ao
alcance de todos; pressupõe uma paridade opinativa, como se todas as
opiniões de equivalessem; e supõe que existe um consenso sobre as
questões que devem ser colocadas sob inquérito.
Nas actuais condições de funcionamento da sociedade, a igualdade
de acesso à informação e ao conhecimento não se encontra
equitativamente distribuída, nem os enunciadores são desprovidos de
estatutos simbólicos. Na verdade, cada vez mais se procuram
autoridades que asseverem certas posições dominantes e que
comentem os tópicos dos dispositivos tecnológicos de mediação
simbólica. Este comentário feito pelos "fazedores de opinião"
é mais a inculcação de uma visão literalmente ortodoxa e
aceite sem dissensões, do que uma oportunidade individual de
re-interpretação dos acontecimentos. Ora só existe acordo nas
questões a serem objecto das sondagens se virmos a questão
unilateralmente: pelo lado dos detentores de poder político e
económico.
Mas se a opinião pública se viu desprovida dos atributos
ético-morais, significará isso que não haverá opinião
pública, como afirma Bourdieu?
A Opinião Pública Sistémica
Efectivamente a opinião pública de uma publicidade crítica deu
lugar a um outro tipo de opinião pública, fruto das condições
políticas, económicas e sociais da modernidade tardia. A opinião
pública contemporânea deve ser observada à luz da teoria dos
sistemas, na crescente complexidade funcional das sociedades
pós-industriais - que já não se baseiam no conceito de
opinião pública liberal - e ao mesmo tempo salientar o papel dos
dispositivos tecnológicos de mediação tecnológica nesse
processo. Pela necessidade de analisar os mecanismos que subjazem à
formação de opinião pública actual, Luhmann (1978) cunhou o
conceito de
tematização como o dispositivo de
construção da opinião pública das sociedades
pós-industriais consentâneo com a complexidade estrutural que as
sociedades apresentam e com a transformação inerente do sistema
político. As sociedades complexas caracterizam-se pela
diferenciação funcional e divisão em subsistemas ou sistemas
parciais, pela divisão do trabalho e especialização do
conhecimento, e pelo aparecimento de processos de
institucionalização que reduzem a complexidade do meio. Os
sistemas tendem para a sua auto-manutenção através de
mecanismos retroactivos que regulam a relação do sistema com o
meio encontrando-se este em permanente mutação.
No contexto de sociedades funcionalmente diferenciadas, a opinião
pública é entendida como mecanismo de redução da crescente
complexidade dos sistemas sociais que estabelece e delimita, por
intermédio da tematização, um conjunto de assuntos sobre os
quais se deve pensar. Ela corresponde às necessidades do sistema
político de responder às expectativas dos outros subsistemas. A
tematização consiste "no processo de definição,
estabelecimento e reconhecimento público dos grandes temas, dos
grandes problemas políticos que constituem a opinião pública,
através da acção determinante dos meios de comunicação de
massas" (Saperas, 2000: 89).
Neste entendimento, a opinião pública não tem por objecto a
generalização do conteúdo das opiniões individuais através
de fórmulas gerais, aceitáveis por todo aquele que faça uso da
razão, mas sim a adaptação da estrutura dos temas do processo
de comunicação política às necessidades de decisão da
sociedade e do seu sistema político" (Luhmann, 1978: 98).
A opinião pública não só deixa de ser o redundamento da
discussão racional e livre dos temas de interesse público, como
também já não assenta na diversidade de opiniões expressas, nem
é regulada pelo objectivo do consenso.
A contrario, a
opinião pública é agora uma "estrutura temática da
comunicação pública" (
idem: 97), instrumento de
selecção da relevância por parte dos dispositivos
tecnológicos de mediação simbólica em função das
necessidades do sistema político, reduzindo, dessa forma, a
complexidade dos sistemas e subsistemas sociais ao apontar para um
número circunscrito de temas, e reclamando possíveis opiniões que
esses temas podem gerar. O sistema político orienta-se pela
opinião pública que limita e selecciona as suas possibilidades de
movimento. A opinião pública forma uma espécie de espelho da
sociedade, no qual o sistema político observa e se observa. "Assim,
o espelho da opinião pública, tal como o sistema dos preços de
mercado, torna possível uma
observação dos
observadores. Como sistema social, o sistema político usa a
opinião pública para se tornar capaz de se observar e desenvolver
estruturas de expectativas correspondentes. A opinião pública não
serve para estabelecer contactos externos. Serve a clausura
auto-referencial do sistema político, o círculo fechado da
política" (Luhmann, 2001: 87). Essa relação entre opinião
política e sistema político é imbricada mas não é uma de
causa/efeito. Afirma-se, antes, enquanto estrutura e processo
(Böckelmann, 1983: 56).
Este mecanismo de redução da complexidade dos sistemas sociais e
da comunicação sistémica apresenta claros efeitos cognitivos,
ao constituir, pela selecção temática, os limites do
pensável. A tematização indica não como pensar mas, pelo
menos, indica o que pensar. De certa forma, a tematização
desempenha uma função semelhante ao do estereótipo enquanto
mecanismo de formação de hábitos de apreensão e de
criação de sentido estável e consistente, que provoca uma
sensação de segurança e ordem ao criar padrões definidos de
expectativas (cf. Lippman, 2004: 44). Por outro lado, o conceito de
tematização, em estreita articulação com o de opinião
pública, revela o facto dos dispositivos tecnológicos de
mediação simbólica, na sua rotina do exercício da sua
actividade, contribuírem, influenciarem e determinarem o
funcionamento dos sistemas sociais, designadamente o sistema
político. A formulação luhmanniana tem a virtude de ser
sensível à relação entre uma comunicação
institucionalizada e uma comunicação informal e individual ao
salientar a associação entre formação de opinião
pública e os dispositivos tecnológicos de mediação
simbólica.
Segundo a s
ystemstheorie de Luhmann, o conceito de opinião
pública renuncia às expectativas de racionalidade e a uma
"revitalização" da vida civil. A opinião pública nas
sociedades pós-industriais é, sobretudo, um órgão-guia e
uma estrutura comum de sentido que permite o melhor funcionamento
social. Ela não determina o exercício do poder político, nem a
formação de opinião, mas configura os contornos desse mesmo
exercício ou formação. O corolário desta concepção de
opinião pública é extremamente relevante: a opinião pública
"tem o mesmo papel que a tradição nas sociedades
antigas
12: oferecer algo a que se possa aderir e ser
salvo de recriminação" (Luhmann
, op.cit: 85).
Conclusão
A opinião pública das sociedades industriais já não pode possuir
a euforia ou as veleidades liberais de uma publicidade crítica.
Apenas disforicamente se pode actualmente considerá-la, embora
comporte ainda potenciais de emancipação. Quanto muito a
opinião pública contemporânea é uma opinião quasi-pública
(Habermas, 1991: 247) que, embora seja endereçada a uma vasta
audiência, não preenche os requisitos de um processo público de
debate crítico-racional, tal como proposto no séc. XVIII. A
opinião quasi-pública traduz um comércio da opinião; já
não é instância de formação mas de imposição. Já
não reflecte as subjectividades, molda-as. A razão cedeu perante
a emoção. Já não acontece em diálogos intersubjectivos e
presenciais, é mediatizada tecnologicamente. Já não é
aferível discursivamente, apenas mediante um corte técnico da
realidade. A opinião pública já não se realiza num homem
público, mas sim num homem abstracto, quantificável e
estandardizado.
O périplo sintético que empreendemos em torno da história do
conceito de opinião pública salienta que, não obstante o vigor
apresentado na aurora do liberalismo, a opinião pública é hoje
marcada por uma profunda desconfiança. Embora continue a ser uma
referência fundamental da teoria política democrática, vê-se
denunciada. Consequência da sua progressiva tecnicização, a
opinião pública assiste à erosão da sua legitimidade.
De estrela cadente, a opinião pública, primeiro substantivada,
depois adjectivada, por fim tecnicizada, transformou-se numa estrela
enfraquecida; numa estrela decadente.
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Footnotes:
1Mestre em Ciências da Comunicação. Email: sammat@clix.pt
2 Nomeadamente
vox populi,
opinião comum, ou
opinião
popular. Protágoras, por exemplo, refere "crença da maioria",
Heródoto menciona "opinião popular", Demóstenes fala em "voz
pública da pátria" e Cícero em "apoio do povo" (Arribas, 1990:
15). Fernão Lopes foi um dos que na Idade Media descreveram não
apenas o comportamento caótico, fervoroso e descontrolado das
multidões como também dá conta, no capítulo XI "Do
alvoroço que houve na cidade cuidando que matavam o mestre e como
lá foi Álvaro Pais e muitas gentes com ele" da "
Crónica
de D. João I", da
vox populi que surge como uma forma
primitiva da opinião pública e que está na origem do levantamento
popular que matou a rainha D. Leonor e o Conde Andeiro. Nesta crónica
está patente a capacidade de mobilização e importância social
que a
vox populi possuía na época medieval. Ela acabou
mesmo por produzir uma opinião, neste caso, de discordância da
actuação da regência da Rainha e do Conde Andeiro que está na
origem da decisão de D. João I chefiar o movimento revoltoso.
Note-se que o Mestre de Avis foi proclamado regedor e defensor do
reino não apenas por mesteirais, como pelo povo-miúdo e
homens-bons, primeiro de Lisboa e depois por todo o Portugal.
3 A antropóloga identificou em diferentes
comunidades tribais - respectivamente os
Arapesh,
os
Iatmul ambos na Nova-Guiné, e uma tribo do Bali -
três processos de opinião pública que se realizavam aquando da
violação das leis das sociedades primitivas, na ambiguidade
quanto à interpretação da aplicação dessas leis e na
forma de apaziguar um conflito entre dois membros. Em qualquer destes
casos, o que estava em jogo era uma forma de atingir o consenso pelo
que foram desenvolvidos mecanismos análogos aos da "opinião
pública" que permitiam manter coesa a comunidade ao mesmo tempo que
mantinham aberta a possibilidade de encetar uma acção conjunta,
pilar da organização e do funcionamento tribais.
4 Foi convencionado que o Liberalismo se inicia com a
publicação, em 1776, da
Riqueza das Nações de Adam
Smith e termina em 1848 com a oferta à estampa de
Princípios de Economia Política de John Stuart Mill
(Arribas, 1990: 27).
5 As
liberdades civis referem-se às actividades privadas e resultam do
nascimento da instância do público, como a entidade que medeia o
Estado e a sociedade civil. Tratam-se, por isso, de liberdades nas
quais a esfera pública burguesa influiu determinantemente.
6 É curioso constatar que um estadista, quarenta e
três anos passados da proposta de Tönnies, defina a dinâmica da
opinião pública em termos mutacionais em moldes muito semelhantes.
Marcello Caetano fala em correntes profundas, intermédias e
superficiais da opinião pública, indo desde os valores fundamentais
de uma sociedade até aos rumores e boatos como factores influentes na
transformação dos diversos estados da opinião pública
(Caetano, 1965: 19-36).
7 Por exemplo, James
Bryce define a opinião pública como um agregado de tudo aquilo que
é pensado e dito acerca de um assunto (Bryce, 1981: 3). Nesta
definição, a opinião pública é desprovida, portanto, de um
carácter ético-moral.
8 Esta ideia estava já
presente em Hegel cujo entendimento da esfera pública está
subordinado à função de integrar as opiniões subjectivas dos
indivíduos na objectividade que caracteriza o Estado. A opinião
pública vê-se por isso privada de ser o garante último do
debate político. Ela só existe em afinidade com o Estado que se
assume como a realidade da liberdade concreta e a conciliação dos
interesses particulares com os interesses universais (Bavaresco, 1998:
119). Aí reside a crítica de Hegel ao sufrágio universal: este
repousa sobre a aparência atomística da opinião pública e
corresponde a uma concepção abstracta da vida política porque
ignora que o Estado é a universalidade concreta que exprime
(dialecticamente) o interesse universal e o interesse particular.
Constata-se que esta é uma posição completamente oposta à
liberal que identifica o Estado, não com a liberdade mas com a
autoridade. Para Hegel, a liberdade não constitui uma esfera apartada
do Estado (Hegel, 1973: 187-229).
9 Embora fosse
pertinente mencionar outros autores, refiramos que os pensamentos de
Sigmund Freud e de Vilfredo Pareto incluem uma crítica à
racionalidade do sujeito que podemos estender à incapacidade
crítico-racional de formação de opinião pública. Freud
fá-lo ao sublinhar outras dimensões da mente humana,
nomeadamente, a dos instintos, desejos e pulsões que fazem do homem
um sujeito já não pleno (como a Ilustração defendia) mas
determinado pelo conflito entre o consciente e o inconsciente. Por seu
turno, Pareto ao partir da separação entre acções lógicas
(adequação entre meios e fins) e acções não-lógicas,
reduz o comportamento humano a resíduos e derivações, isto é
respectivamente, a sentimentos não-lógicos e a
justificações póstumas para esse comportamento. As opiniões,
são para ele, simples tentativas de racionalização de
resíduos básicos.
10 Apesar de
(tendencialmente) despida da sua racionalidade crítica, a opinião
pública não se torna irracional. Pelo contrário, ela assume-se
segundo a hiperracionalidade, "designadamente na forma como concretiza
a lógica instrumental e um racionalismo utilitarista" (Pissarra
Esteves, S/D). Portanto, uma racionalidade efectivada às despesas das
outras dimensões da razão.
11 Bourdieu foi, na sua análise da opinião
pública, muito influenciado por Herbert Blumer, nomeadamente na
formulação dos seus três postulados.
Vide Blumer,
2000: 147-160.
12 Tönnies e Luhmann partilham a visão da opinião
pública como adaptação estrutural às sociedades (modernas, no
caso do primeiro, ou da modernidade tardia no caso de Luhmann). Tal
como Tönnies
, Luhmann coloca a opinião pública como
substituto da religião.