A Estrela (De)Cadente: uma breve história da opinião
        pública 
      Samuel Mateus1 
      2008 
      
      A centralidade da opinião pública no pensamento social e político
      faz dela um valor simbólico fundamental das sociedades. Com efeito,
      ela serviu para fundamentar revoluções, movimentos democráticos
      ou apoiar regimes totalitários. Napoleão, por exemplo,
      considerava-a "um poder invisível e misterioso ao qual nada
      resiste; nada é mais mutável, mais vago ou mais forte; e mesmo que
      caprichosa ela, porém, é justa bastante mais frequentemente do que
      pensamos" (Napoleão 
apud Le Bon, 1918: 163).
      
        
      
      A opinião pública emergiu encarnando os ideais mais genuínos de
      uma publicidade crítica exercida por um público no contexto de uma
      economia liberal e de uma sociedade dominada pela burguesia. O
      revestimento ético-moral da opinião pública advém do papel
      político que a esfera pública assumiu e da forma como é
      desempenhada essa tarefa. A função política revela-se na
      exigência não só de legitimidade colocada ao poder político,
      como também de participação nesse exercício. A opinião
      pública é filha da razão e expressa-se enquanto vontade
      colectiva através dos debates de ideias, da liberdade de expressão
      do pensamento, liberdade de associação e, sobretudo, da liberdade
      de imprensa. É, portanto, o seu carácter racional e a sua forma
      comunicacional que formam os pilares do sentido moral e ético da
      opinião pública (Pissarra Esteves, 2003: 198-202).
      
        
      
      Com este artigo pretendemos percorrer não apenas o caminho da
      consagração mas, também, o trajecto da descaracterização
      da opinião pública demonstrando a sua mutação. Introduzimos a
      discussão sobre o declínio de uma publicidade crítica, mas
      sobretudo perspectivamos as transformações ocorridas nas
      sociedades ocidentais nalguns dos seus mais basilares mecanismos e que
      dão origem a entendimentos paralelos da publicidade.
      
        
      
      Comecemos pela teorização substantivista da opinião pública
      respeitante à relação entre público e Estado.
      
        
      
      Concepção Substantivista da Opinião Pública
      
        
      
      Ainda que apenas no Séc. XVIII se tenha utilizado a expressão
      opinião pública no âmbito da discussão filosófica de
      democracia parlamentar, muitas outras expressões foram usadas com
      objectivos afins aos cristalizados no conceito
2. Os
      seus atributos parecem poder ser extrapolados para períodos temporais
      e contextos sociais outros que não os da esfera pública burguesa,
      possibilitando a universalização do conceito de opinião
      pública. Margaret Mead (1965), por exemplo, descreve mecanismos
      antropológicos de interacção colectiva nos quais se podem
      reconhecer os princípios gerais do processo de opinião
      pública
3. Isso significa
      que a operacionalização burguesa do conceito é apenas uma de
      entre as possíveis. Naturalmente esta ideia é susceptível à
      crítica na medida em que isso significaria uma transformação
      substancial do significado da esfera pública (Habermas, 1992,
      462-463).
      
        
      
      Não obstante a hipótese de uma universalização conceptual e
      temporal da opinião pública, esta foi invocada com persistência
      de maneira muito precisa, no contexto da esfera pública burguesa e de
      sociedades liberais de pendor democrático. O modelo liberal constitui
      o primeiro grande entendimento de opinião pública concebida de
      forma substantivada: uma Opinião Pública maiúscula, instância
      entre a sociedade civil e o Estado. A tradição
      liberal
4 defenderá e articulará o regime da opinião
      face ao regime da autoridade do despotismo ilustrado. A opinião
      pública liberal assenta em duas dimensões: a política e a
      económica.
      
        
      
      O liberalismo político sintetiza-se no artigo 1
      da 
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de
      1789: "Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos" e
      inclui o princípio da igualdade, das liberdades civis
5 (inviolabilidade do domicílio, direito a uma educação, entre
      muitas outras) e das liberdades públicas (liberdade de imprensa,
      liberdade de expressão e associação). Ele distingue-se pela
      insistência na vigilância das actividades governamentais pelas
      instituições por intermédio da doutrina de separação dos
      poderes, de Montesquieu (poder executivo, legislativo e judical).
      Essencial para a concepção liberal de opinião pública, o
      pluralismo político defende a existência de uma arena pública
      onde diferentes correntes de opinião se possam defrontar através da
      criação de associações.
      
        
      
      O liberalismo económico condensa-se na máxima "
laissez
      faire, laissez passer, le monde va de lui même" que não significa
      mais do que a liberdade de comércio e de produção. Estas
      liberdades apoiam-se não apenas na propriedade privada, como na
      liberdade de empresa e na lei de mercado, em que é a oferta e a
      procura a regular o mercado, e onde o Estado não deve intervir. Na
      formulação liberal encontra-se reduzido a garantir o
      cumprimento destes princípios e a assegurar a ordem pública.
      
        
      
      Esta breve caracterização das teses liberais é relevante para
      perceber que a opinião pública liberal (burguesa) se constitui como
      força moral e crítica sobre a sociedade e o Estado ou qualquer
      outro poder em geral. A opinião pública política fundamenta-se
      na esfera privada, mais propriamente na sociedade civil, e é
      constituída pelos indivíduos particulares reunidos em público que
      fazem ouvir a sua voz através de uma comunicação política
      expressa como opinião pública, tida esta como produto do
      raciocínio público sobre os assuntos públicos. Dado que cada um
      possui a sua aspiração privada, é na defesa dos
      interesses de cada um que publicamente se pode atingir a harmonia e o
      bem-estar social. O seu pressuposto é que somente do diálogo e do
      debate públicos pode a verdade assomar aos homens e guiar os
      cidadãos na identificação e no solucionamento dos problemas da
      sociedade. A opinião pública surge de uma reabilitação
      pública da 
doxa na medida em que, erigida em fundamento de
      legitimidade da acção governamental, requer que a opinião de
      cada subjectividade seja considerada igual perante todas as restantes.
      A teoria liberal da opinião pública é uma teoria do público e
      da sua liberdade constitutiva em expressar os seus pontos de vista, em
      discutir os temas e em avaliar criticamente os actos do poder
      político.
      
        
      
      A principal metáfora liberal sobre a opinião pública é a do
      tribunal. A opinião pública constitui-se em tribunal de razão
      cuja tarefa consiste em vigiar e apreciar o poder político com o
      objectivo de obstar a sua disfuncionalização e impedir uma
      governação alheia aos seus interesses. Para Jeremy Bentham, o
      público compõe um tribunal que é mais poderoso do que todos os
      outros, é incorruptível e tende a iluminar os homens. A publicidade
      governamental contribuirá, então, para a melhoria da razão e do
      discurso públicos e prevenirá a corrupção. O tribunal que a
      opinião pública constitui permitirá, também, aos eleitores
      agirem com competência na escolha dos seus representantes (Cutler,
      1999: 325). A sua consecução depende, por isso, de uma imprensa
      crítica que torne públicas as decisões governamentais de modo a
      facilitar o debate público, já que "o segredo nos assuntos supõe
      a tirania dos governantes" (Bentham, 1821). Com efeito, o editor do
      jornal actua como uma espécie de juiz e tão fundamental é o seu
      papel que é considerado como a figura mais importante da vida
      política a seguir ao primeiro-ministro. Como nota Tocqueville, a
      imprensa é "o olhar que traz à luz os segredos da política e
      força os homens públicos a comparecer perante o tribunal da
      opinião" (Tocqueville, 1981: 271). O tribunal da opinião
      pública
 constitui, não só o mais seguro dispositivo
      contra a ameaça da corrupção pública, como igualmente
      assume a realização da ética utilitarista. O tribunal é
      "para o exercício pernicioso do poder governamental a única medida
      (
check); para o exercício benéfico, um suplemento
      indispensável. Os governantes competentes seguem-no; os néscios
      ignoram-no. No presente estádio da civilização, os seus
      ditames coincidem, na maior parte dos casos, com o princípio da maior
      felicidade" (
greatest happiness principle) (Bentham, 1983:
      36). Bentham defendia, assim, numa enunciação progressista, uma
      opinião pública de acordo com o imperativo ético utilitarista: "
      a maior felicidade para o maior número de pessoas". Quatro
      funções são incumbidas ao Tribunal da Opinião Pública: uma
      função de esclarecimento oferecendo informação ao
      público, uma função censora em que avalia os assuntos
      públicos, uma função executiva em que recompensa ou pune as
      acções públicas, e, por fim, uma função terapêutica
      propondo directrizes na definição dos projectos (
idem:
      37-39). A função censora é a mais pregnante das dimensões
      de que a opinião pública se revestiu entendida como tribunal.
      Jean-Jacques Rosseau descreve um censor com o propósito de
      fortalecer a opinião pública como a guardiã da moralidade
      pública. "Do mesmo modo que a declaração da vontade geral se
      processa na lei, a declaração do julgamento público
      realiza-se na censura; a opinião pública é o espaço da lei
      cujo censor é o ministro (...)" (Rosseau, 1966: 168). "A
      censura preserva os costumes e a moral prevenindo as opiniões de se
      corromperem através de intervenções razoáveis, algumas vezes
      mesmo, fixando-as quando ainda não estão definidas"
      (
idem: 169). A opinião pública possui, no fundo, o dever
      de impelir os governantes a desempenharem os seus cargos com
      responsabilidade fazendo-lhes chegar os desejos dos cidadãos.
      Assim, ela assegura a confiança dos governados bem como o seu
      assentimento e anuência às medidas legislativas. Nesta medida, a
      opinião pública de Bentham, mais do que uma força de pressão,
      erige-se como elemento do aparelho político de governação.
      
        
      
      Verificamos que o tribunal que Bentham descreve inverte o princípio da
      sua prisão panóptica: se o olhar do guarda pode ver os seus
      prisioneiros, agora, é o público que pode observar - e verificar
      - os membros da governação. É a acessibilidade e a
      visibilidade do governo, enquanto dispositivos de controlo da sua
      actividade, que permitem uma publicidade que assegura a confiança
      do público nas decisões políticas. Como é claro, a metáfora
      da opinião pública como tribunal vai beber inspiração, nos
      seus traços gerais, ao princípio de publicidade kantiano que faz
      do esclarecimento e da visibilidade dos assuntos públicos a
      condição incontornável da justiça. Contudo, e ao contário
      de Kant, se o entendimento benthamniano da publicidade faz da
      visibilidade e acessibilidade as condições de um eficiente
      controlo sobre as elites do poder, o debate racional possui uma
      importância marginal e o carácter crítico da publicidade é
      secundário.
      
        
      
      Se quiséssemos aplicar uma distinção entre teorias da opinião
      pública, poderíamos afirmar que o entendimento liberal se posta do
      lado das teorias substantivistas da opinião pública (Splichal,
      1999: 2), isto é, uma formulação político-normativa de
      contornos ético-morais que faz da opinião pública um
      instrumento do público na condução dos assuntos políticos.
      Ela assume-se especificamente logomáquica, isto é, como uma justa
      de opiniões sustentadas que pelo seu carácter polémico configuram
      a positividade e a negatividade da opinião pública. Neste caso a
      opinião pública é a opinião do público.
      
        
      
      Concepção Adjectivista da Opinião Pública
      
        
      
      Abordemos a opinião pública a partir da sua constituição
      adjectivista, a qual consagra, na primeira metade do séc. XX, a
      passagem do público como órgão substantivo para designar, antes,
      a qualidade da opinião, isto é, uma opinião que é publicada mas
      que não é (necessariamente) pública.
      
        
      
      A teorização de Ferdinand Tönnies é relevante no que concerne
      a estabelecer um compromisso entre a concepção substantivista e
      adjectivista, pois, ainda que não ignore a dimensão ética da
      opinião pública, é sensível à distinção entre opinião
      pública e opinião publicada o que faz dele um precursor da
      teorização da opinião pública na sua relação com os
      dispositivos tecnológicos de mediação simbólica.
      
        
      
      A teoria crítica da opinião pública de Tönnies exposta, em 1922,
      na 
Kritik der öffentlichen Meinung, é uma das mais
      significantes contribuições para a teoria social clássica e
      configura-se num esforço sistemático de fazer da opinião
      pública uma componente essencial dos processos sociais e culturais.
      Rejeitando a tradição psico-social que se desenvolveu a partir
      dos anos 30 do séc. XX, Tönnies abandona uma concepção
      restrita e espacial da opinião pública. Tal como para Tarde (1991:
      11), o público é uma forma de reunião intelectual na qual os seus
      membros partilham ideias sem que interajam directamente. A
      espacialidade não é, aqui, o factor determinante.
      
        
      
      O autor de 
Kritik der öffentlichen Meinung integra na sua
      teorização as ideias de racionalidade e moralidade tal como
      postuladas pela abordagem filosófico-normativa. A moralidade
      manifesta-se no comportamento do público e providencia a base sobre
      a qual as relações sociais podem ser construídas. A
      racionalidade advém do facto do seu pensamento se basear numa
      abstracção intelectual da opinião pública que não existe em
      concreto, mas que funciona como uma ferramenta no inquérito das
      manifestações histórico-culturais das sociedades. Ela
      resulta, em especial, do facto da opinião pública não ser
      compelida por aspectos externos (como por exemplo, o dinheiro) mas
      somente norteada pelo esclarecimento e pela ilustração, algo que
      a faz deter um elevado grau de validade normativa e de juízo moral
      (Splichal e Hardt, 2000: 50). A opinião pública é, então,
      concebida como uma forma de vontade social de produção de
      conhecimento por intermédio de uma vontade unânime que existe na 
Gesellshaft (Sociedade) em associação como outras duas
      formas de vontade social complexa, a convenção e a
      legislação, e opera um papel semelhante ao da religião no seio
      da 
Gemeinshaft (Comunidade).
      
        
      
      Demitimo-nos de proceder a aprofundamentos da obra de Tönnies para
      salientar, antes, os aspectos mais relevantes das subtilezas que a
      opinião pública pode aparentar e que denunciam já o germe de
      transformação que ela viria a sofrer nos finais do séc. XIX, e
      nos princípios do séc. XX. Na sua obra de 1922, Tönnies
      estabelece três diferentes sentidos para a opinião pública: 
die Öffentliche Meinung, 
eine öffentliche
      Meinung, e 
öffentliche Meinung, respectivamente, opinião
      do público, opinião pública e opinião publicada.
      
        
      
      A opinião do público (
die Öffentliche Meinung) é a
      opinião pública crítico-racional, efeito da discussão do
      público. Trata-se de um acordo unânime da opinião dos
      cidadãos desenvolvido pelo razoamento independente de cada um que
      culmina num acordo universal atingido através do consenso de
      razoabilidade da maioria. Apenas os cidadãos eruditos são
      susceptíveis de participar nesse processo de formação da
      opinião. O sujeito da opinião do público configura "um público
      essencial e politicamente harmonioso que concordou opinar e ajuizar de
      um modo particular e que, portanto, pertence naturalmente à vida
      pública... A opinião do público é essencialmente uma
      vontade expressa num juízo e pela avaliação - como um acto
      coeso - e, por isso, é uma consciente e manifesta forma da vontade
      no sentido de uma deliberação ou avaliação judicial por
      qualquer outro órgão decisional" (Tönnies 
apud Splichal
      e Hardt, 2000: 75).
      
        
      
      Estamos perante uma Opinião Pública em maiúsculas, símbolo maior
      da racionalidade e do uso público da razão, força unitária e
      expressão da vontade comum, na qual as afinidades electivas, ou seja,
      a conexão espiritual ao nível das ideias, são preferidas a
      desfavor de uma conexão espacial.
      
        
      
      A Opinião Pública (
eine öffentliche Meinung) nomeia um
      conglomerado de perspectivas, desejos, intenções e opiniões
      contrárias - e controversas) em confronto na esfera pública,
      degladiando-se por atraírem a atenção do público de modo a
      que se transforme na opinião do público
 (die Öffentliche
      Meinung). Contudo, sem a força centrípeta do público que une e
      torna coesas as opiniões transformando-as numa unidade de vontade,
      a Opinião Pública, no sentido de Tönnies, não passa de um
      estádio intermédio entre a opinião do público e a opinião
      publicada.
      
        
      
      A opinião publicada (
öffentliche Meinung) consiste, por seu
      turno, na divulgação social de uma opinião que por essa
      circunstância se torna a opinião de muitos, espécie de ideia
      estandardizada que se oferece à partilha sem que de desenvolva um
      ajuízamento e uma forma transversal de formação de opinião.
      Concerne uma opinião individual expressa publicamente, destinada a
      nenhum receptor particular e diferencia-se de uma opinião privada
      porque a sua concepção é dirigida à publicidade.
      
        
      
      Estas acepções revelam os processos de formação modernos da
      opinião pública e desenham-no como uma acção fluida e
      dinâmica iniciada individualmente mas concluída colectivamente em
      que de uma opinião vulgar, transitória e indefinida se atinge a
      unificação da vontade de uma sociedade em torno de fins
      consensuais. O contraditório que se gera, num estádio intermédio,
      contribui, assim, para a consolidação e solidificação da
      opinião que diversamente alimentada se constitui não apenas com um
      nível elevado de acordo, como também, com um agudo sentido de
      pluralidade. Na dependência dessa fluidez processual surgem diversos
      estados de agregação da opinião pública identificados com uma
      analogia termo-dinâmica da Física. "Tönnies toma de
      empréstimo uma metáfora da Física para afirmar que o 
momentum da opinião do público é determinado pela massa
      e velocidade - o poder da opinião do público depende do grau de
      solidez e energia que coloca em movimento uma opinião, no grau
      proporcional ao grau de unanimidade e intensidade da vontade"
      (
idem: 89). A opinião pública pode, pois, viajar de uma
      convicção sólida, a uma proposta líquida, até a uma ideia
      gasosa, onde a instabilidade é a sua característica
      principal
6.
      
        
      
      A solidez da opinião pública é explícita no acordo geral acerca
      de valores inalienáveis, como a liberdade. A fluidez é patente em
      assuntos controversos e com interesses repartidos em que a opinião
      pública se demonstra imparcial. O estado gasoso da opinião
      pública ilustra a sua dinâmica mutacional e a sua vitalidade na
      convocação de assuntos e temas problemáticos que carecem de uma
      resposta, ou pelo menos, de uma tomada de posição da sociedade.
      Há, pois, uma circulação muito viva nos três estádios em
      que a opinião pública se movimenta: desde uma erosão da
      convicção até a uma construção inabalável dessa
      crença. A intensidade desta efervescência revela a capacidade
      problematizadora da sociedade e a existência de um público activo e
      vigilante que exercendo a sua razão se agita nas certezas
      fundamentais. A espontaneidade da formação da opinião pública
      descoberta nestes três estádios asserta que a experiência
      pública se mantém atento às inquietações sociais.
      
        
      
      A opinião publicada é a pré-categoria da opinião pública que
      se nos afigura mais fértil em interrogar, já que permite
      começar a pensar numa opinião pública sem maiúsculas, e sem a
      unidade normativa, como é exemplo a opinião do público. Na medida
      em que as opiniões começam a aflorar na publicidade e se
      desenvolvem os dispositivos tecnológicos de mediação
      simbólica, a opinião pública, no seu sentido
      crítico-racional, viu-se ameaçada, ao longo do séc. XX, por
      uma profusão de perspectivas que, dada a sua quantidade, fizeram
      perigar a sua qualidade. Para isso contribui decididamente os processos
      dinâmicos de formação dessa opinião pública esclarecida.
      
        
      
      O Declínio da Opinião Pública
      
        
      
      Os supra-referidos estádios atestam a falência de um certo
      entendimento liberal da opinião pública e que nos cabe aqui expor
      em síntese.
      
        
      
      Os liberais defendiam uma opinião estática e imutável que apoiaria
      os modos de pensar dos cidadãos. Na verdade, a opinião pública
      é o domínio, por excelência, de avanços e retrocessos, em que
      a verdade não é somente um objecto velado que nos cabe aclarar e
      desocultar publicamente. Ao contrário do "racionalismo optimista"
      liberal, a verdade é apenas o pretexto que a opinião pública
      encontra para tecer o seu pensamento e delinear um projecto. "Embora a
      procura da verdade através da discussão racional livre seja um
      assunto público, não é a opinião pública (seja o que isso
      for) que é o seu desiderato. Ainda que a opinião pública possa
      ser influenciada pela ciência e possa julgar a ciência, não é o
      produto de uma discussão científica" (Popper, 1968: 352).
      
        
      
      As três derivas de opinião pública de Tönnies permitem-nos
      perceber claramente que existe nela duas existências: uma
      institucionalizada, como por exemplo, a opinião do público
      (
die Öffentliche Meinung), e uma não-institucionalizada,
      a opinião publicada (
öffentliche Meinung), e a opinião
      pública (
eine öffentliche Meinung). Para além das arenas
      convencionadas, há muitas outras, informais, triviais e quotidianas,
      onde cada indivíduo expressa a sua opinião. Este conjunto de
      opiniões poderão, eventualmente, formar uma opinião pública do
      público mas, em si, formam opiniões públicas em potência (sem
      por isso serem menos relevantes no domínio da publicidade). O
      pensamento dialógico do "eu creio que ele crê em..." é uma
      das formas fundamentais de criar opinião pública ainda que
      careça desse valor normativo da opinião pública do público.
      Este carácter dialógico repele o mito liberal de uma opinião
      monolítica (Rosenbaum, 1975: 131), expressão de uma vontade geral
      rosseauniana. A pressuposição de um consenso na opinião do
      público (
die Öffentliche Meinung) não elimina o facto de
      que a formação de opinião passa por vários estágios,
      antitéticos e contraditórios entre si, em que a opinião não é
      homogeneamente vinculativa, e onde se concorre com vários pontos de
      vista que originarão graus variáveis de adesão (cf. Bourdieu,
      1972: 222). Devemos, pois, ver uma opinião caleidoscópica, prisma
      que refracta e simultaneamente reflecte os raios de luz de cada
      subjectividade. O pensamento de Tönnies acerca da opinião pública
      é, deste modo, ambivalente: ao mesmo tempo que a concebe em moldes
      normativos, possui a argúcia de espírito para identificar alguns
      aspectos que permitem pensar, não apenas nas fragilidades do modelo
      liberal, como numa erosão normativa da opinião pública que se
      exacerbará ao longo do séc. XX.
      
        
      
      A Opinião Pública Contemporânea 
      
        
      
      As Contradições Interna e Externa
      
        
      
      Ora é na confluência do passado e do presente que encontramos a
      opinião pública hodiernamente reinante. Ela debate-se, como
      tantas outras formulações das ciências sociais e humanas, entre
      o ser e o dever ser, entre a ideologia e a utopia, entre a
      quantificação e a qualificação. A opinião pública
      submete-se a criticismos e é, na actualidade, um conceito de
      contornos difusos e fluidos, hidra de mil-cabeças capaz de
      apresentar diversas formas. A tal ponto, dir-se-ia, que apenas pela
      conjugação das diversas acepções numa família semântica
      se poderia, a bom rigor, aproximarmo-nos da sua definição.
      
        
      
      A controvérsia na sua clarificação advém, sobretudo, das
      contradições que a expressão 
opinião pública tenta
      redimir.
      
        
      
      Ao nível de uma contradição interna, a opinião pública
      depara-se com uma dissensão semântica porque valoriza ao mesmo
      tempo dois pólos antagónicos entre si, a opinião e o público. A
      opinião (
opinio) aponta para uma unidade de conhecimento
      individual, enquanto o público denota uma unidade sintética de
      múltiplas opiniões individuais. A contradição interna da
      expressão "opinião pública" mascara, assim, a tensão
      primordial entre o singular e o plural, entre aquilo que é próprio
      (
idion) e aquilo que é comum (
koinon), se
      quisermos, entre um princípio individual e um princípio colectivo.
      A opinião (
doxa) é, desde o pensamento grego clássico, o
      eco da subjectividade dos seres humanos. O termo opinião no idioma
      alemão (
Meinung) não esconde que é um facto meu
      (
meine), isto é, que pertence, em exclusivo, a cada um.
      Ferdinand Tönnies identifica mesmo a actividade de opinar
      (
Meinen) com o pensar (
Denken) (Tönnies, 2000:
      117). Já o público é compreendido como o oposto da opinião: ele
      implica a presença de um conjunto de pessoas que se reúnem entre
      si e em que os traços idiossincráticos permanecem elididos a
      favor de aspectos essenciais que preenchem a identidade comum. Existe,
      portanto, no núcleo da opinião pública, um confronto de
      tendências conflituantes que provocam, desde o séc. XVIII, uma
      oscilação de enunciações em torno dos aspectos holísticos
      (colocando a ênfase na esfera colectiva
7), e dos aspectos particularistas
      (atribuindo destaque à componente individual) (Price, 1992: 2).
      
        
      
      Mas encontramos igualmente uma contradição externa que se realiza
      entre os sujeitos da opinião pública e os sujeitos a quem ela é
      dirigida, entre a expressão e a realização da opinião
      pública. Com o advento dos dispositivos tecnológicos de
      mediação simbólica essa contradição agudizou-se.
      "Ainda que o público fosse compreendido como o fundamento normativo
      da democracia, na medida em que o forum público foi moldado através
      da discussão crítica sobre os assuntos públicos pela
      educação e pelo cultivo individual, os modernos 
mass
      media criaram um novo tipo de público despolitizado e independente
      da participação no processo de tomada de decisão" (Splichal,
      1999: 51).
      
        
      
      Com efeito, a opinião pública contemporânea resulta não só da
      falência do modelo liberal como também de circunstâncias e
      factores característicos do desenvolvimento das nossas sociedades, de
      que destacamos, a democracia de massa, e o incremento dos fluxos
      comunicacionais sofrido com o desenvolvimento medialógico dos
      dispositivos tecnológicos de mediação simbólica. Ao perder os
      atributos próprios da publicidade crítica, e pelo facto de que a
      expressão de opinião foi substituída pela apresentação da
      opinião, fala-se hoje na sua dissolução.
      
        
      
      A Opinião Pública Estatística da Sociedade de Massa
      
        
      
      O crescimento demográfico e o sufrágio universal, com a concomitante
      expansão das liberdades e direitos individuais entrecruzam-se
      intimamente com a opinião pública ao ponto de se afirmar que se
      trata de uma "opinião de massa", constituída já não
      "verdadeiramente por públicos, como em épocas anteriores, mas sim
      por esta nova sociabilidade a que damos o nome de massa, formas de
      agregação social dos indivíduos que tem por base relações
      sociais frágeis, superficiais e burocratizadas" (Pissarra Esteves,
      S/D). Os públicos não se extinguem; no entanto, perdem a sua
      eficácia simbólica o que corresponde a uma profunda alteração
      dos padrões de participação, os quais limitam as
      subjectividades e impedem a discursivização argumentativa
      agonística levando o indivíduo e o cidadão à indiferença,
      ao amorfismo e à interpretação dos assuntos apoiada em aspectos
      apolíticos e acríticos. "Se não há verdadeiros sujeitos na
      massa, então não há também lugar para falarmos em direitos, em
      obrigações, ou responsabilidades; tudo o que conferia uma
      espessura ético-moral à opinião pública se desvanece na massa
      surgindo em seu lugar um território politicamente pantanoso mas muito
      propício para a manobra de certos (e poderosos) interesses
      particulares organizados" (
idem). O público perde, por
      isso, a sua perfomatividade característica como espaço
      comunicacional e a opinião pública pauperiza-se. Os dispositivos
      tecnológicos de mediação simbólica apropriam-se do
      enfraquecimento dos públicos e tomam para si certas prerrogativas,
      entre as quais o papel de discussão política - que, em conjunto
      com a emergência do Estado-Providência, faz da opinião
      pública um "acondicionamento funcional" com vista a processar a
      legitimidade das decisões políticas. A opinião pública foi
      anexada ao funcionamento estatal
8 e, sob a forma de sondagens e
      inquéritos de opinião (particularmente atractiva ao funcionamento
      dos dispositivos tecnológicos de mediação simbólica),
      funciona como instrumento da acção política cuja função
      passa por construir a ideia de que existe uma opinião pública
      unânime, e "[quer] impor a ilusão de que existe uma opinião
      pública como somatório puramente aditivo das opiniões
      individuais, [quer a ilusão] de que existe algo como a média das
      opiniões ou a opinião média" (Bourdieu, 1972: 224). Porém,
      como massa, o indivíduo é incapaz de se colocar criticamente no
      papel de agente enunciador de opinião
9. A opinião pública não passa disso mesmo;
      de uma opinião. Uma opinião de maioria formulada por uma maioria e
      para uma massa. Tocqueville havia já percebido os efeitos perniciosos
      da massa cuja opinião não nasce da persuasão mas da
      imposição, quando falava da comutação do reino da crítica
      pelo da opinião (Tocqueville, 1981: 17). Mill sentia a mesma
      inquietação que Tocqueville quando criticava a esfera pública
      de, dominada pela multidão, ser incapaz de dar racionalidade às
      suas deliberações. " Os indivíduos estão, no presente,
      perdidos na multidão. Em política é quase uma trivialidade dizer
      que a opinião pública rege o mundo. O único poder merecedor esse
      nome é o das massas, e dos governos quando se fazem o órgão das
      tendências instintos das massas. Isto é verdade tanto nas
      relações morais e sociais da vida privada como nos negócios
      públicos" (Mill, 1909: 41).
      
        
      
      A opinião pública é imposta por outros. Porque ao indivíduo
      mancam as condições que lhe permitem constituir como políticas
      as questões e de lhes aplicar as categorias políticas. "O mundo da
      política está fora de alcance, longe da vista e fora da mente. Tem
      de ser explorado, anunciado e imaginado (...) Aquelas imagens,
      pelas quais grupos de pessoas ou indivíduos agindo em nome dos
      grupos, constituem a Opinião Pública em letras maiúsculas"
      (Lippman, 2004: 16). A produção técnica de opinião pública
      em que consistem as sondagens de opinião culmina na inversão da
      relação Estado e opinião pública: já não é a opinião
      pública a nortear a acção estatal, é o Estado a controlar a
      produção de opinião pública que deixa de ser uma
      produção crítico-racional
10 para ser uma produção técnica
      alicerçada estatisticamente, confundindo-se os planos
      quantitativo e qualitativo. Uma opinião pública industrialmente
      produzida baseada numa "ficção estatística" (
idem)
      já não tem poder vinculativo porque os indivíduos valem apenas
      enquanto número, entidade aritmética e abstracta, sem identidade.
      As sondagens colocam entre parênteses o estatuto dos indivíduos;
      mais, retiram-lhes a sua subjectividade e simplificando o
      raciocínio político em dicotomias estéreis. A opinião
      torna-se, assim, um recurso de mercado, e a lógica económica
      capitalista de sobrepor a quantidade à qualidade, estende-se até
      ao domínio da publicidade e da política. Com efeito, "a forma
      abstracta da mercadoria destinada a converter-se em valor puro de
      troca acaba por subordinar todas as restantes dimensões sociais
      (...). É neste contexto que o espaço público se autonomiza
      e se transforma de modo a garantir a circulação generalizada,
      como campo generalizado da publicidade dos produtos. Deste modo, a
      imprensa, de veículo da opinião publicamente produzida nos
      espaços de debate e convívio, torna-se pouco a pouco
      produção de opinião, substituindo-se, assim, ao trabalho de
      produção colectiva que orientava o projecto iluminista (...)
      (Rodrigues 1990: 41). O público transmuta-se em objecto de
      discurso.
      
        
      
      Desse modo, os meios da comunicação pública são insuficientes
      para o comprometimento político (Dewey, 1927: 181). A opinião
      publica é, antes de mais, uma construção e uma 
mise en
      représentation que se interpõe entre os cidadãos e os aparelhos
      político-informacionais. A opinião é apenas um corte
      técnico-estatistico desenhado com laivos de uma análise
      psico-sociológica presa à observação de atitudes tomadas
      como unidades mínimas de significação. "A opinião pública
      torna-se o rótulo de uma análise sócio-psicológica de
      processos grupais (...); o público compara-se à "massa",
      depois ao grupo, como o substrato sócio-psicológico de um
      processo comunicativo e interactivo entre dois ou mais indivíduos"
      (Habermas, 1991: 241). A psicoligização do público levada a
      cabo pelas sondagens de opinião transforma a opinião pública numa
      mera alusão a um processo de comunicação colectiva, e
      restringe-a a um agregado de respostas anónimas de indivíduos
      isolados a um conjunto de questões arbitrariamente definidas. Neste
      modelo behaviouristico, todos os atributos da opinião pública do
      séc. XVIII são excluídos, nomeadamente e sobretudo, a
      formação de um consenso da cidadania pela discussão pública.
      O problema coloca-se agora ao nível das funções específicas
      da comunicação - pública e política - e o papel do
      Estado e instituições na realização da opinião
      pública.
      
        
      
      As sondagens que estão na origem moderna da opinião pública podem
      ser sintetizadas como instrumentos políticos de obnubilação e
      sentenciadores de posições, mais do que produções
      discursivas do público. " Através da multiplicidade de lugares que
      pode ocupar no discurso e da flutuação das suas figuras
      narrativas e dos seus efeitos de sentido, a opinião pública é
      mais uma entidade inserida numa estratégia de legitimação e
      contralegitimação, uma arma de mobilização política do
      que um conceito científico ou um instrumento de análise da
      realidade social" (Rodrigues, 1988: 39). O público, enquanto
      categoria de juízo crítico não produz uma opinião avalizada.
      Por isso Bourdieu (1972) acredita que a opinião não existe e
      denuncia, mesmo, alguns pressupostos frágeis do modelo liberal de
      opinião pública. Três postulados sofismáticos  são
      denunciados
11: a opinião pública tecnicamente produzida tem
      implícito que todos podem ter uma opinião e que esta está ao
      alcance de todos; pressupõe uma paridade opinativa, como se todas as
      opiniões de equivalessem; e supõe que existe um consenso sobre as
      questões que devem ser colocadas sob inquérito.
      
        
      
      Nas actuais condições de funcionamento da sociedade, a igualdade
      de acesso à informação e ao conhecimento não se encontra
      equitativamente distribuída, nem os enunciadores são desprovidos de
      estatutos simbólicos. Na verdade, cada vez mais se procuram
      autoridades que asseverem certas posições dominantes e que
      comentem os tópicos dos dispositivos tecnológicos de mediação
      simbólica. Este comentário feito pelos "fazedores de opinião"
      é mais a inculcação de uma visão literalmente ortodoxa e
      aceite sem dissensões, do que uma oportunidade individual de
      re-interpretação dos acontecimentos. Ora só existe acordo nas
      questões a serem objecto das sondagens se virmos a questão
      unilateralmente: pelo lado dos detentores de poder político e
      económico.
      
        
      
      Mas se a opinião pública se viu desprovida dos atributos
      ético-morais, significará isso que não haverá opinião
      pública, como afirma Bourdieu?
      
        
      
      A Opinião Pública Sistémica
      
        
      
      Efectivamente a opinião pública de uma publicidade crítica deu
      lugar a um outro tipo de opinião pública, fruto das condições
      políticas, económicas e sociais da modernidade tardia. A opinião
      pública contemporânea deve ser observada à luz da teoria dos
      sistemas, na crescente complexidade funcional das sociedades
      pós-industriais - que já não se baseiam no conceito de
      opinião pública liberal - e ao mesmo tempo salientar o papel dos
      dispositivos tecnológicos de mediação tecnológica nesse
      processo. Pela necessidade de analisar os mecanismos que subjazem à
      formação de opinião pública actual, Luhmann (1978) cunhou o
      conceito de 
tematização como o dispositivo de
      construção da opinião pública das sociedades
      pós-industriais consentâneo com a complexidade estrutural que as
      sociedades apresentam e com a transformação inerente do sistema
      político. As sociedades complexas caracterizam-se pela
      diferenciação funcional e divisão em subsistemas ou sistemas
      parciais, pela divisão do trabalho e especialização do
      conhecimento, e pelo aparecimento de processos de
      institucionalização que reduzem a complexidade do meio. Os
      sistemas tendem para a sua auto-manutenção através de
      mecanismos retroactivos que regulam a relação do sistema com o
      meio encontrando-se este em permanente mutação.
      
        
      
      No contexto de sociedades funcionalmente diferenciadas, a opinião
      pública é entendida como mecanismo de redução da crescente
      complexidade dos sistemas sociais que estabelece e delimita, por
      intermédio da tematização, um conjunto de assuntos sobre os
      quais se deve pensar. Ela corresponde às necessidades do sistema
      político de responder às expectativas dos outros subsistemas. A
      tematização consiste "no processo de definição,
      estabelecimento e reconhecimento público dos grandes temas, dos
      grandes problemas políticos que constituem a opinião pública,
      através da acção determinante dos meios de comunicação de
      massas" (Saperas, 2000: 89).
      
        
      
      Neste entendimento, a opinião pública não tem por objecto a
      generalização do conteúdo das opiniões individuais através
      de fórmulas gerais, aceitáveis por todo aquele que faça uso da
      razão, mas sim a adaptação da estrutura dos temas do processo
      de comunicação política às necessidades de decisão da
      sociedade e do seu sistema político" (Luhmann, 1978: 98).
      
        
      
      A opinião pública não só deixa de ser o redundamento da
      discussão racional e livre dos temas de interesse público, como
      também já não assenta na diversidade de opiniões expressas, nem
      é regulada pelo objectivo do consenso. 
A contrario, a
      opinião pública é agora uma "estrutura temática da
      comunicação pública" (
idem: 97), instrumento de
      selecção da relevância por parte dos dispositivos
      tecnológicos de mediação simbólica em função das
      necessidades do sistema político, reduzindo, dessa forma, a
      complexidade dos sistemas e subsistemas sociais ao apontar para um
      número circunscrito de temas, e reclamando possíveis opiniões que
      esses temas podem gerar. O sistema político orienta-se pela
      opinião pública que limita e selecciona as suas possibilidades de
      movimento. A opinião pública forma uma espécie de espelho da
      sociedade, no qual o sistema político observa e se observa. "Assim,
      o espelho da opinião pública, tal como o sistema dos preços de
      mercado, torna possível uma 
observação dos
      observadores. Como sistema social, o sistema político usa a
      opinião pública para se tornar capaz de se observar e desenvolver
      estruturas de expectativas correspondentes. A opinião pública não
      serve para estabelecer contactos externos. Serve a clausura
      auto-referencial do sistema político, o círculo fechado da
      política" (Luhmann, 2001: 87). Essa relação entre opinião
      política e sistema político é imbricada mas não é uma de
      causa/efeito. Afirma-se, antes, enquanto estrutura e processo
      (Böckelmann, 1983: 56).
      
        
      
      Este mecanismo de redução da complexidade dos sistemas sociais e
      da comunicação sistémica apresenta claros efeitos cognitivos,
      ao constituir, pela selecção temática, os limites do
      pensável. A tematização indica não como pensar mas, pelo
      menos, indica o que pensar. De certa forma, a tematização
      desempenha uma função semelhante ao do estereótipo enquanto
      mecanismo de formação de hábitos de apreensão e de
      criação de sentido estável e consistente, que provoca uma
      sensação de segurança e ordem ao criar padrões definidos de
      expectativas (cf. Lippman, 2004: 44). Por outro lado, o conceito de
      tematização, em estreita articulação com o de opinião
      pública, revela o facto dos dispositivos tecnológicos de
      mediação simbólica, na sua rotina do exercício da sua
      actividade, contribuírem, influenciarem e determinarem o
      funcionamento dos sistemas sociais, designadamente o sistema
      político. A formulação luhmanniana tem a virtude de ser
      sensível à relação entre uma comunicação
      institucionalizada e uma comunicação informal e individual ao
      salientar a associação entre formação de opinião
      pública e os dispositivos tecnológicos de mediação
      simbólica.
      
        
      
      Segundo a s
ystemstheorie de Luhmann, o conceito de opinião
      pública renuncia às expectativas de racionalidade e a uma
      "revitalização" da vida civil. A opinião pública nas
      sociedades pós-industriais é, sobretudo, um órgão-guia e
      uma estrutura comum de sentido que permite o melhor funcionamento
      social. Ela não determina o exercício do poder político, nem a
      formação de opinião, mas configura os contornos desse mesmo
      exercício ou formação. O corolário desta concepção de
      opinião pública é extremamente relevante: a opinião pública
      "tem o mesmo papel que a tradição nas sociedades
      antigas
12: oferecer algo a que se possa aderir e ser
      salvo de recriminação" (Luhmann
, op.cit: 85).
      
        
      
      Conclusão
      
        
      
      A opinião pública das sociedades industriais já não pode possuir
      a euforia ou as veleidades liberais de uma publicidade crítica.
      Apenas disforicamente se pode actualmente considerá-la, embora
      comporte ainda potenciais de emancipação. Quanto muito a
      opinião pública contemporânea é uma opinião quasi-pública
      (Habermas, 1991: 247) que, embora seja endereçada a uma vasta
      audiência, não preenche os requisitos de um processo público de
      debate crítico-racional, tal como proposto no séc. XVIII. A
      opinião quasi-pública traduz um comércio da opinião; já
      não é instância de formação mas de imposição. Já
      não reflecte as subjectividades, molda-as. A razão cedeu perante
      a emoção. Já não acontece em diálogos intersubjectivos e
      presenciais, é mediatizada tecnologicamente. Já não é
      aferível discursivamente, apenas mediante um corte técnico da
      realidade. A opinião pública já não se realiza num homem
      público, mas sim num homem abstracto, quantificável e
      estandardizado.
      
        
      
      O périplo sintético que empreendemos em torno da história do
      conceito de opinião pública salienta que, não obstante o vigor
      apresentado na aurora do liberalismo, a opinião pública é hoje
      marcada por uma profunda desconfiança. Embora continue a ser uma
      referência fundamental da teoria política democrática, vê-se
      denunciada. Consequência da sua progressiva tecnicização, a
      opinião pública assiste à erosão da sua legitimidade.
      
        
      
      De estrela cadente, a opinião pública, primeiro substantivada,
      depois adjectivada, por fim tecnicizada, transformou-se numa estrela
      enfraquecida; numa estrela decadente.
      
        
      
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      Footnotes:
      
        
      
      1Mestre em Ciências da Comunicação. Email: sammat@clix.pt
      
        
      
      2 Nomeadamente 
vox populi, 
opinião comum, ou
 opinião
      popular. Protágoras, por exemplo, refere "crença da maioria",
      Heródoto menciona "opinião popular", Demóstenes fala em "voz
      pública da pátria" e Cícero em "apoio do povo" (Arribas, 1990:
      15). Fernão Lopes foi um dos que na Idade Media descreveram não
      apenas o comportamento caótico, fervoroso e descontrolado das
      multidões como também dá conta, no capítulo XI "Do
      alvoroço que houve na cidade cuidando que matavam o mestre e como
      lá foi Álvaro Pais e muitas gentes com ele" da "
Crónica
      de D. João I", da 
vox populi que surge como uma forma
      primitiva da opinião pública e que está na origem do levantamento
      popular que matou a rainha D. Leonor e o Conde Andeiro. Nesta crónica
      está patente a capacidade de mobilização e importância social
      que a 
vox populi possuía na época medieval. Ela acabou
      mesmo por produzir uma opinião, neste caso, de discordância da
      actuação da regência da Rainha e do Conde Andeiro que está na
      origem da decisão de D. João I chefiar o movimento revoltoso.
      Note-se que o Mestre de Avis foi proclamado regedor e defensor do
      reino não apenas por mesteirais, como pelo povo-miúdo e
      homens-bons, primeiro de Lisboa e depois por todo o Portugal.
      
        
      
      3 A antropóloga identificou em diferentes
      comunidades tribais - respectivamente os 
Arapesh,
      os
 Iatmul ambos na Nova-Guiné, e uma tribo do Bali -
      três processos de opinião pública que se realizavam aquando da
      violação das leis das sociedades primitivas, na ambiguidade
      quanto à interpretação da aplicação dessas leis e na
      forma de apaziguar um conflito entre dois membros. Em qualquer destes
      casos, o que estava em jogo era uma forma de atingir o consenso pelo
      que foram desenvolvidos mecanismos análogos aos da "opinião
      pública" que permitiam manter coesa a comunidade ao mesmo tempo que
      mantinham aberta a possibilidade de encetar uma acção conjunta,
      pilar da organização e do funcionamento tribais.
      
        
      
      4 Foi convencionado que o Liberalismo se inicia com a
      publicação, em 1776, da 
Riqueza das Nações de Adam
      Smith e termina em 1848 com a oferta à estampa de 
Princípios de Economia Política de John Stuart Mill
      (Arribas, 1990: 27).
      
        
      
      5 As
      liberdades civis referem-se às actividades privadas e resultam do
      nascimento da instância do público, como a entidade que medeia o
      Estado e a sociedade civil. Tratam-se, por isso, de liberdades nas
      quais a esfera pública burguesa influiu determinantemente.
      
        
      
      6 É curioso constatar que um estadista, quarenta e
      três anos passados da proposta de Tönnies, defina a dinâmica da
      opinião pública em termos mutacionais em moldes muito semelhantes.
      Marcello Caetano fala em correntes profundas, intermédias e
      superficiais da opinião pública, indo desde os valores fundamentais
      de uma sociedade até aos rumores e boatos como factores influentes na
      transformação dos diversos estados da opinião pública
      (Caetano, 1965: 19-36).
      
        
      
      7 Por exemplo, James
      Bryce define a opinião pública como um agregado de tudo aquilo que
      é pensado e dito acerca de um assunto (Bryce, 1981: 3). Nesta
      definição, a opinião pública é desprovida, portanto, de um
      carácter ético-moral.
      
        
      
      8 Esta ideia estava já
      presente em Hegel cujo entendimento da esfera pública está
      subordinado à função de integrar as opiniões subjectivas dos
      indivíduos na objectividade que caracteriza o Estado. A opinião
      pública vê-se por isso privada de ser o garante último do
      debate político. Ela só existe em afinidade com o Estado que se
      assume como a realidade da liberdade concreta e a conciliação dos
      interesses particulares com os interesses universais (Bavaresco, 1998:
      119). Aí reside a crítica de Hegel ao sufrágio universal: este
      repousa sobre a aparência atomística da opinião pública e
      corresponde a uma concepção abstracta da vida política porque
      ignora que o Estado é a universalidade concreta que exprime
      (dialecticamente) o interesse universal e o interesse particular.
      Constata-se que esta é uma posição completamente oposta à
      liberal que identifica o Estado, não com a liberdade mas com a
      autoridade. Para Hegel, a liberdade não constitui uma esfera apartada
      do Estado (Hegel, 1973: 187-229).
      
        
      
      9 Embora fosse
      pertinente mencionar outros autores, refiramos que os pensamentos de
      Sigmund Freud e de Vilfredo Pareto incluem uma crítica à
      racionalidade do sujeito que podemos estender à incapacidade
      crítico-racional de formação de opinião pública. Freud
      fá-lo ao sublinhar outras dimensões da mente humana,
      nomeadamente, a dos instintos, desejos e pulsões que fazem do homem
      um sujeito já não pleno (como a Ilustração defendia) mas
      determinado pelo conflito entre o consciente e o inconsciente. Por seu
      turno, Pareto ao partir da separação entre acções lógicas
      (adequação entre meios e fins) e acções não-lógicas,
      reduz o comportamento humano a resíduos e derivações, isto é
      respectivamente, a sentimentos não-lógicos e a
      justificações póstumas para esse comportamento. As opiniões,
      são para ele, simples tentativas de racionalização de
      resíduos básicos.
      
        
      
      10 Apesar de
      (tendencialmente) despida da sua racionalidade crítica, a opinião
      pública não se torna irracional. Pelo contrário, ela assume-se
      segundo a hiperracionalidade, "designadamente na forma como concretiza
      a lógica instrumental e um racionalismo utilitarista" (Pissarra
      Esteves, S/D). Portanto, uma racionalidade efectivada às despesas das
      outras dimensões da razão.
      
        
      
      11 Bourdieu foi, na sua análise da opinião
      pública, muito influenciado por Herbert Blumer, nomeadamente na
      formulação dos seus três postulados. 
Vide Blumer,
      2000: 147-160.
      
        
      
      12 Tönnies e Luhmann partilham a visão da opinião
      pública como adaptação estrutural às sociedades (modernas, no
      caso do primeiro, ou da modernidade tardia no caso de Luhmann). Tal
      como Tönnies
, Luhmann coloca a opinião pública como
      substituto da religião.