Habermas e a Teoria do Jornalismo:
A Manipulação Ideológica no Jornalismo como Distorção
Sistemática da Comunicação
Heitor Costa Lima da Rocha1
2008
O jornalismo foi, historicamente, imprescindível à
consolidação dos dois subsistemas funcionais básicos da
modernidade: (1) o Estado, como entidade profissionalizada e
burocratizada permanente, dotando a administração real das
condições necessárias ao controle social estável, baseado na
garantia da obediência dos dominados através de mecanismos
ideológicos consentidos pela própria sociedade, e (2) o mercado,
cuja viabilização exigiu a transformação do valor de uso
dos produtos em valor de troca das mercadorias, através de um sistema
generalizado de troca de informações para estabilização das
expectativas da sociedade quanto à equação da abundância e da
escassez na oferta e na procura de bens, o que condiciona a
definição e oscilação dos preços.
No entanto, além destas funções sistêmicas, desde os seus
primórdios, a questão da capacidade do jornalismo de produzir
efeitos sobre a sociedade já se configurava como uma ameaça à
estrutura de poder estabelecida, evidenciando seu caráter ambíguo
(ESTEVES, 2003, p. 153): por um lado, representava um instrumento de
dominação; mas, também, por outro, constituía-se num fator
de libertação, emancipação de tutelas e esclarecimento.
Portanto, o objetivo deste trabalho é entender as concepções
específicas sobre a mídia noticiosa (sociologia do jornalismo) e a
sua capacidade - ou incapacidade - de produzir efeitos na
sociedade, bem como as relações de poder envolvidas no embate
pelo controle do campo jornalístico, sob a perspectiva da teoria do
agendamento (
agenda setting). Neste sentido, são analisadas
as teorias da notícia como espelho da realidade, da ação
pessoal (Gatekeeper) e organizacional, bem como da ação
política, etnoconstrucionista (News Making) e estruturalista, estas
últimas abordagens identificadas com o paradigma da notícia como
construção e fundadas a partir da guinada
lingüística, vinculando criticamente a teoria do
discurso jornalístico à mudança social. Neste contexto, a
teoria da ação comunicativa de Habermas é vislumbrada como
modelo capaz de orientar uma aproximação entre as abordagens
"liberais", que desvinculam o funcionamento da mídia noticiosa da
estrutura de poder, e "radicais", que acusam os meios de
comunicação de se subordinarem à ideologia da classe dominante
(SERRA, 2001, p. 85).
1 As primeiras reflexões sobre a comunicação de massa
Enquanto, na Alemanha, o advento da mídia eletrônica, com a
massificação do rádio, despertou o aprofundamento da linha de
reflexão crítica sobre os efeitos da comunicação de massa,
especialmente através de Theodor Adorno e de Max Horkheimer, nos
Estados Unidos, foi constituída a chamada
mass communication
research, cujos trabalhos, de franca inspiração positivista,
ficaram cientificamente prejudicados diante do comprometimento
"administrativo" das pesquisas com os grandes veículos, as
agências de publicidade e o governo norte-americano (notadamente as
forças armadas), que os financiavam (WOLF, 1994, p. 18). Neste
sentido, a questão dos efeitos da mídia sofre uma variação
radical - da onipotência atribuída aos veículos de
comunicação de massa pela Teoria Hipodérmica à Teoria dos
Efeitos Limitados, na qual se pretende, praticamente, negar qualquer
poder de influência sobre as pessoas do público -, porém, a
despeito de se constituírem em posições extremas e
diametralmente opostas, essas concepções, nos momentos
históricos em que vigoraram, encaixaram-se, perfeitamente, com os
interesses da estrutura de poder que financiou as pesquisas que lhes
deram origem.
A persistência da hegemonia da Escola Sociológica Funcionalista
até a década de 70 fica patente na argumentação inicial da
Teoria do Agendamento (
Agenda Setting), que sempre partia,
timidamente, da ressalva de que a mídia não teria nenhuma
capacidade de influir sobre a opinião das pessoas, mas que haveria
indícios de que poderia indicar os temas que se deveria levar em
consideração como relevantes na análise da realidade.
Portanto, só 30 anos após o pioneiro trabalho de Cohen é que a
Teoria do Agendamento vai promover uma "virada pelo avesso" no seu
paradigma, salientando que os mídia não só nos dizem em que
pensar, mas também como pensar nisso e, conseqüentemente, o que
pensar.
A Teoria do Agendamento apresenta três componentes básicos: a agenda
midiática (ou agenda jornalística), o conteúdo da mídia; a
agenda pública, acontecimentos e assuntos vividos efetivamente pelas
pessoas que compõem o público por serem considerados como
relevantes; e agenda das políticas governamentais, eventos e
informações patrocinadas pelo aparelho do Estado.
Correspondendo a cada uma dessas agendas, Molotch e Lester classificam
três tipos de atores ou agências principais que exercem
influência sobre a definição da agenda jornalística: a) os
promotores de notícia (
news promoters) - indivíduos que
identificam uma ocorrência como especial e, assim, a difundem com
base em algo, por alguma razão, para os outros; b) os jornalistas,
editores, redatores e todos os profissionais do campo jornalístico
(
news assemblers) que codificam os materiais fornecidos pelos
promotores, transformando estas ocorrências promovidas em
acontecimentos públicos; e c) os consumidores de notícia
(
news consumers), cidadãos que assistem aos produtos
jornalísticos "e criam, desse modo, nos seus espíritos, uma
sensação do tempo público" (MOLOTCH; LESTER, 1999, p. 38).
O processo de fabricação da notícia tem origem no promotor. Na
montagem do produto jornalístico, os profissionais da mídia, de
forma tão mais independente quanto mais democrática for a
sociedade, exercem livremente o reconhecimento da relevância dos
acontecimentos, seguindo os critérios profissionais deontológicos
que indexam estes fatos dentro do modelo cognitivo de
interpretação da realidade vigente na cultura em cada momento
específico da formação social. Os desvios desses mapas
ideológicos de leitura do real são tratados como parcialidade ou
outra distorção patológica.
As pessoas do público consumidor dos produtos jornalísticos
compõem, em última instância, as galerias da esfera pública
geral e abstrata articulada pela mídia, que aqui funciona como
sinônimo de agenda pública. No entanto, a soberania ideal do
público limita, mas não elimina a capacidade das empresas de
comunicação de massa de exercer influência sobre a sociedade,
pois "o resíduo de biografia, materiais anteriores disponibilizados
pelos
media e o presente contexto, tudo isso molda o trabalho
do consumidor de construção de acontecimentos" (MOLOTCH; LESTER,
1999, 42).
Portanto, a assimetria de poder entre a agência governamental dos
promotores da notícia, a agência jornalística dos profissionais
da mídia e a agência pública dos simples consumidores ilustra
também os três tipos de acesso de que dispõem para tentar
coincidir as suas necessidades de acontecimentos com a efetiva
produção do discurso jornalístico.
(1) O acesso habitual ou privilegiado, tipo de acesso contínuo
usualmente mantido pelos promotores de notícias que compõem a
agenda política governamental (fontes oficiais) e estão no centro
da estrutura de poder.
(2) O acesso disruptivo é o recurso daqueles que necessitam de um
acesso habitual à agenda midiática, mas, para isso, precisam
lançar mão da disrupção, ou seja, necessitam penetrar nas
formas habituais de produção de notícias, quebrando a rotina.
Vale salientar que os setores que precisam recorrer ao acesso disruptivo
à mídia são os dos excluídos, que enfrentam muita dificuldade
devido a um aspecto fundamental da atividade dos promotores da
notícia, que são, em geral, os proeminentes representantes da
estrutura de poder do Estado e das grandes corporações do
mercado: eles têm "interesses na promoção de certas
ocorrências para utilidade pública, assim como interesses na
prevenção de certas ocorrências de se tornarem acontecimentos
públicos" (MOLOTCH; LESTER, 1999, p. 39).
(3) No acesso direto, exercido pelos jornalistas, estes
news
assemblers passam a tomar, assim, diretamente, a iniciativa pela
promoção da notícia, "desenterrando" acontecimentos que, na
maioria das vezes, a estrutura de poder gostaria de preservar longe do
conhecimento público e provocando as fontes oficiais a comparecerem
perante o tribunal da opinião pública para se explicar.
2 Quem exerce o poder do jornalismo?
Para a sociologia do jornalismo, é desafiadora a
relevância das influências mútuas - "mas certamente
desiguais" (TRAQUINA, 2001, p. 25) - que se verificam entre as
três agendas, suscitando uma discussão de extrema importância
sobre quem realmente determina a pauta jornalística.
Um exemplo desta discussão pode ser identificado na análise da
relação da imprensa com o Congresso Nacional, realizada por
Malena Rehbein Rodrigues (2002, p. 111-112), como sendo determinada
pelos jornalistas, que fazem com que os congressistas se guiem mais em
suas iniciativas pelo noticiário do dia do que pelos projetos em
tramitação nos expedientes das sessões plenárias ou das
comissões técnicas do Poder Legislativo.
Pode-se citar como contrários a essa conclusão não só Molotch
e Lester, mas também Stuart Hall e outros, para quem os jornalistas
não são os definidores primários de acontecimentos noticiosos,
pois representam um papel secundário colocando-se numa
"posição de subordinação estruturada aos
primary
definers" (HALL et alli, 1999, p. 230).
É preciso, na questão da identificação dos atores com maior
capacidade de definição da agenda jornalística, levar-se em
conta não só que o campo da mídia é o local de geração do
poder comunicativo, fundamental para as democracias modernas, mas
também considerar as pressões e injunções exercidas nesse
processo pelos controladores do capital investido nas empresas da
área (donos dos veículos), pelos representantes da estrutura de
poder do Estado e das organizações do mercado (inclusive os
anunciantes) e pela própria sociedade através do público
consumidor dos produtos midiáticos e dos cidadãos idealmente
engajados num legítimo processo de constante atualização
constitucional (auto-governo da sociedade) inerente ao Estado de
direito democrático.
3 As teorias da notícia
O processo de comercialização, industrialização e
profissionalização dos jornalistas, nos países desenvolvidos,
foi incrementado no século XIX e consolidado no início do século
XX. Com este novo jornalismo (jornalismo de informação) surge a
idéia da possibilidade de uma separação precisa entre a
divulgação de fatos e opiniões. Essa presunção, ainda
hoje prevalecente na maioria das redações, vincula-se ao
positivismo, que reinou na ciência e em todo esforço
técnico-científico ambicionando imitar o novo invento da
máquina fotográfica, capaz de reproduzir o mundo real como um
espelho.
A reflexão crítica sobre o mito da objetividade esbarra em
resistências dos próprios jornalistas. Essa reação dos
profissionais evidencia o caráter ideológico do mito da
objetividade, haja vista o seu significado, como falsa consciência,
no empobrecimento da visão epistemológica da relação do
jornalismo com o mundo, escamoteando a sua função estratégica
no processo social de construção da realidade, isto, sim, se
constituindo em fator de aviltamento da profissão. Aos jornalistas
é cobrada a humanamente impossível tarefa de espelhar (ou
reapresentar perfeitamente) o mundo, o que o torna um profissional que
nunca consegue atingir o desempenho que lhe é atribuído, ao mesmo
tempo em que não é reconhecida a sua dimensão maior, e
efetivamente real, de participar da construção do mundo, por ser
a mídia o local, por excelência, onde se processa a
reprodução simbólica da realidade, funcionando como o local ou
estuário onde a história em construção é germinada.
Durante a hegemonia do funcionalismo, não foi problemático o
surgimento nos Estados Unidos, em 1950, do conceito de
gatekeeper, em artigo publicado por David Manning White no
Journalism Quarterly, pois não contrariou, já que até
corroborava, alguns posicionamentos tradicionais da
mass
communication research, como o de entender a seleção das
notícias como um processo puramente de escolha pessoal do jornalista,
sem pressões ou coações dos proprietários dos veículos, das
agências de publicidade e anunciantes ou do Estado.
Em 1955, no entanto, Warren Breed desenvolve a Teoria
Organizacional, com uma abordagem sociológica mais consistente em que
o produto jornalístico é tido como resultado das injunções e
constrangimentos impostos aos jornalistas pela organização
empresarial dos veículos de comunicação de massa. Claramente na
contra-mão da linha "administrativa" dos estudos da época, a
teoria de Warren Breed só pôde disseminar-se nos estudos
científicos dos meios acadêmicos norte-americanos a partir dos
anos 70, quando começa a ruir a hegemonia
positivista-funcionalista.
Seis fatores são apontados pela Teoria Organizacional como relevantes
na promoção do conformismo do jornalista com a política
editorial da organização: (1) a autoridade institucional e as
sanções; (2) os sentimentos de obrigações e de estima para
com os superiores; (3) as aspirações de mobilidade; (4) a
ausência de grupos de lealdade em conflito; (5) o prazer da
atividade; (6) as notícias como valores.
Por outro lado Warren Breed identifica fatores que, dentro do âmbito
de atuação da área de influência do jornalista, podem
ajudá-lo a extrapolar os limites da política editorial do
veículo e expandir o horizonte cultural do seu público, como o fato
das normas da política editorial não serem claras (geralmente não
são explicitadas no manual de redação, pois envolvem questões
inconvenientes de serem assumidas publicamente), a tática da "prova
forjada" (repassar a pauta a um colega de empresa concorrente para
provocar a sua publicação e, assim, obrigar o seu jornal a ter
que assumir o evento ou questão como notícia), entre outras
possibilidades de subversão da política editorial pelos
repórteres.
Dessa maneira, alem de contemplar um aspecto crucial do processo de
elaboração do produto jornalístico, que é o da
contradição ideológica existente nas organizações
empresariais da mídia, que se expressa entre os interesses dos
proprietários e os dos jornalistas, raramente reconhecido nos estudos
não só da época, mas também na atualidade, as reflexões de
Warren Breed evidenciam a consciência de que o funcionamento do
subsistema da comunicação de massa não é fechado, quer dizer,
não se auto-referencia reproduzindo-se de forma autônoma
(autopoiética) e reduzindo tudo mais - seu público e a sociedade
de uma maneira geral - a mero entorno, como defende Luhmann (2000, p.
19).
4 As novas abordagens
Na Teoria da Ação Política, as notícias se constituem,
verdadeiramente, em propaganda. Na sua versão de direita, os
jornalistas aparecem como se constituindo em uma nova classe de
burocratas e intelectuais com ineludíveis parcialidades políticas,
que comprometem o relato da realidade dos fatos, manipulam a cobertura
jornalística e distorcem as notícias para que reflitam os
interesses envolvidos nas suas opiniões anticapitalistas (TRAQUINA,
2001, p. 81). Na versão oposta, Noam Chomsky e Edward Herman (1979)
identificam a violência simbólica praticada pela mídia na
distorção da cobertura noticiosa do papel do governo
norte-americano na repressão ao chamado Terceiro Mundo, devido ao
atrelamento desses veículos de comunicação de massa aos
interesses e à ideologia das elites políticas e econômicas
norte-americanas.
A perspectiva da distorção é explicada por Herman (1999, p. 214)
como decorrente do fato de que somente um conjunto de fatos é posto
pela mídia à disposição da população em geral,
descartando-se a condição da "diversidade significativa", ou
seja, a exigência de "envolvimento de todos os temas de
interesse substancial para a maioria da população nos assuntos
selecionados pelos meios de informação e a disponibilização
para inspeção pública de todos fatos e sistemas de
interpretação relacionados com o tema tratado pela mídia".
De uma maneira geral, Herman e Chomsky acusam cinco condicionamentos
como responsáveis pela submissão do jornalismo aos interesses do
sistema capitalista: (1) a estrutura de propriedade dos mídia; (2) a
sua natureza capitalista, isto é, a procura do lucro e a
importância da publicidade; (3) a dependência dos jornalistas de
fontes governamentais e fontes do mundo empresarial; (4) as ações
punitivas dos poderosos; (5) a ideologia anticomunista dominante entre
a comunidade jornalística norte-americana.
A partir dos anos 70, a investigação baseada no
paradigma da notícia como uma construção envolve duas novas
teorias - estruturalista e etnoconstrucionista - que apresentam
uma contundente refutação da Teoria do Espelho, ao observar a
impossibilidade de uma distinção rigorosa entre a realidade e o
jornalismo, já que a mídia noticiosa participa da construção
da própria realidade. Nesse sentido, argumenta-se também que a
própria linguagem não pode funcionar como transmissora direta do
significado inerente aos acontecimentos, porque não existe linguagem
neutra.
Desta forma, tendo as rotinas como elemento-chave nas práticas de
produção jornalística que englobam e são constitutivas da
ideologia, a Teoria Etnoconstrucionista ou do
News Making que
o processamento jornalístico da notícia - selecionando,
excluindo, acentuando ou minimizando diferentes aspectos dos eventos e
temáticas, seguindo a orientação de um determinado
enquadramento - dá vida aos acontecimentos, pois os faz significar
de uma ótica própria, e, assim, reconstrói esses fatos e, a
partir deles, participa da construção da realidade.
Além desses cuidados que o jornalista deve ter na codificação de
seu produto, é preciso levar em consideração que seu trabalho
é submetido a uma longa cadeia organizacional estruturada por uma
hierarquia de editores e seus assistentes. Ciente dessa realidade que
envolve o processamento da notícia, o jornalista é levado a
conjecturar sobre os interesses de seus superiores, e todos sobre a
vontade do proprietário. No final, "todos criticarão a notícia
após a sua publicação" (TUCHMAN, 1999, p. 77).
Portanto, para os teóricos do
News, tanto quanto para os
estruturalistas, o critério de noticiabilidade, como produto de
múltiplas negociações, legitima o
status quo. Neste
contexto, os grupos sociais que atuam fora do consenso são vistos
como marginais e a sua marginalidade é tanto maior quanto mais se
afastarem do social legitimado, através da afirmação e da
demonstração de atos de violência.
A Teoria Estruturalista compartilha com a versão de esquerda da
Teoria da Ação Política a idéia de que a mídia exerce um
papel relevante na reprodução da ideologia dominante, mesmo que
salientando o caráter inconsciente e involuntário com que "os
media têm-se transformado efetivamente num aparelho do
próprio processo de controle - um aparelho ideológico de
Estado" ( HALL et alli, 1999, p. 248).
O controle sistêmico que o jornalismo, geralmente, exerce na
preservação da estrutura de poder, contudo, na visão dos
estruturalistas, não se constitui num processo fechado, pois os
veículos de comunicação de massa não fazem parte do aparelho
de Estado, possuem lógicas e interesses próprios que podem
levá-los a entrar em conflito com os poderosos definidores
primários da notícia, bem como angariar vantagens com as
possíveis disputas entre as instituições da estrutura de poder.
A tremenda desigualdade no poder de definir a agenda midiática,
existente na relação entre os jornalistas e os poderosos do
Estado e do mercado, fica patente na distinção que os
estruturalistas fazem desses agentes sociais como definidores
primários da notícia, enquanto os profissionais da imprensa figuram
apenas como definidores secundários.
A construção do consenso no idioma público da mídia, portanto,
na visão dos estruturalistas, não prescinde da facticidade
(coação de pressões externas), mas a realização dessa
função perlocucionária depende mais dos valores notícias
contidos nas práticas profissionais para induzir à reprodução
da ordem institucional vigente. Desta maneira, coincide com a
distinção observada por Terry Eagleton (1997, p. 122) sobre as
duas dimensões da ideologia: uma externa ao discurso (ou
extradiscursiva), manipulada pelos meios de controle sistêmicos
dinheiro e poder; e outra interna aos discursos (ou intradiscursiva),
respaldada no pano de fundo da tradição cultural, em que
"lacunas, repetições, elisões e equívocos são
significantes" para compreensão de determinada "forma de
comunicação sistematicamente distorcida".
Dentre os inúmeros modelos desenvolvidos para explicar a
produção das notícias, podem ser identificadas abordagens
passivas que concebem uma representação da realidade, pela
mídia, praticamente sem mediação (teoria do espelho), ou
concepções que atribuem, de forma mais ou menos intensa,
capacidade de influência a fatores externos ou internos ao próprio
discurso jornalístico. Os fatores internos à mídia noticiosa
dizem respeito aos proprietários e às políticas editoriais das
empresas jornalísticas, às motivações biográficas
(simpatias pessoais, códigos de valores-notícia ou
constrangimentos organizacionais) dos profissionais. As "pressões de
fora para dentro exercidas pelos leitores, anunciantes ou fontes"
caracterizam os fatores externos capazes de influenciar o discurso
jornalístico.
Em face desses parâmetros, Sônia Serra (2001, p. 85) aponta, em
linhas gerais, na abordagem liberal-pluralista, a vinculação a
uma concepção dos veículos de comunicação de massa como
"organizações independentes da estrutura de poder da sociedade,
controladas principalmente externamente pelos seus consumidores e pela
competição entre as fontes e internamente pelos seus
profissionais, influenciados pelos valores comuns da sociedade". Nessa
abordagem, compete à mídia noticiosa as funções de
vigilância sobre os governos, garantia de acesso de todas as
interpretações e a disponibilização de representações
objetivas para o estabelecimento de um debate amplo e geral nas
questões de interesse público.
Na perspectiva oposta, a abordagem radical acusa os meios de
comunicação de exercerem, principalmente, a função de
veiculação da ideologia da classe dominante, devido à sua
subordinação aos interesses do Estado capitalista e demais
organizações poderosas na sociedade, apresentando uma
atuação controlada pelos governos, anunciantes e proprietários,
sob a influencia das condições econômicas do mercado.
5 O modelo da Habermas e a tendência à convergência
Segundo Sônia Serra (2001, p. 83), as duas últimas décadas
evidenciaram uma certa tendência de convergência entre as
abordagens, por um lado, com os estudos liberais reconhecendo
limitações estruturais no processo de produção de
notícias, enquanto, por outro, a posição radical absorvia uma
visão mais aberta, plural e dinâmica, sob a influência do
conceito gramsciano de hegemonia e a inspiração da noção de
campo sugerida por Pierre Bourdieu, ambos considerando a mídia um
espaço de conflito.
Neste contexto, o modelo habermasiano vem exercendo uma considerável
influência nos estudos sobre a imprensa, combinando elementos das
visões radicais e liberais, sobretudo depois da revisão (HABERMAS,
1997), 30 anos depois da elaboração original (HABERMAS, 1984), do
conceito de esfera pública, ampliando a dimensão de sua
relevância, antes destacadamente normativa e, agora, também,
expressivamente empírica.
Além dos atores institucionais poderosos das grandes corporações
do mercado e do sistema político, o conceito revisto de esfera
pública reconhece relativa autonomia aos jornalistas e profissionais
da mídia, mediante a influência que o público exerce na
visibilidade midiática como espectadores das "galerias", bem como
dos atores coletivos periféricos à estrutura de poder que, nos
momentos de crise, quando se verifica uma maior mobilização na
esfera pública, podem, a despeito das desvantagens estruturais,
prevalecer na definição da pauta da agenda midiática, formando
opinião e vontade capaz de se transformar em poder comunicativo e,
assim, definir a atuação do Estado sobre as questões
tematizadas.
Para salientar as características de seus atores, vale frisar os
três tipos de situações que acontecem na definição de
posição públicas na visibilidade midiática: o modelo de
acesso interno, quando os atores da estrutura de poder do Estado e do
mercado satisfazem seus interesses num espaço de opacidade, em que
as questões não são tratadas abertamente e as decisões são
divulgadas como fatos consumados (circunstância em que a esfera
pública fica neutralizada, em estado de "repouso", mas não
extinta, pois certos acontecimentos podem acordá-la
repentinamente); o modelo de mobilização, em que a iniciativa
permanece com os agentes organizados, mas estes precisam utilizar-se
dos meios de controle sistêmicos dinheiro e poder, na tentativa de
mobilizar a esfera pública para tentar desonerar o sistema das
pressões por sentido e legitimidade; e o modelo de iniciativa
externa, no qual os atores dos movimentos sociais excluídos da
estrutura de poder alcançam a agenda da mídia, obrigando o debate
formal sobre seus temas e reivindicações, através da pressão
da opinião pública.
De uma maneira geral, é bastante evidente a convergência de
posições das teorias estruturalista e etnoconstrucionista com a
Teoria da Ação Comunicativa de Habermas, quanto à questão
específica dos efeitos midiáticos. Pode-se verificar isso no
reconhecimento da majoritária tendência dos produtos
jornalísticos de funcionarem como meio de controle sistêmico,
visando a reprodução da ordem estabelecida e, consequentemente,
a colonização do mundo da vida, bem como, por outro lado, com
relação à possibilidade de fluxos comunicativos da periferia da
estrutura de poder tornarem-se, através da mídia noticiosa, poder
comunicativo com articulação de opinião e vontade capaz de
influenciar os poderes Legislativo, (e, a partir deste, os demais)
Executivo e Judiciário.
Contudo, persistem posicionamentos contraditórios relacionados
com a intencionalidade da ação estratégica perlocucionária no
discurso jornalístico. Enquanto Edward Herman, Noam Chomsky e
Jürgen Habermas identificam na atuação da mídia noticiosa uma
pressão deliberada para interditar significados e bloquear
reivindicações de legitimidade, os estruturalistas e
etnoconstrucionistas vêem essa função sendo determinada de
forma difusa, através das estruturas e rotinas do processo de
produção das notícias, nas quais os jornalistas reproduziriam,
de certa forma latente, inconsciente, a ideologia dominante e os
interesses da estrutura de poder.
Todavia, mesmo no Primeiro Mundo, e não só no Terceiro, parece
evidente a influência dos meios de controle sistêmicos. Então,
essas duas formas de dominação não são excludentes, pois
coexistem em maior ou menor intensidade. Claro que nas sociedades menos
desenvolvidas, o grau de racionalização processado pela sociedade
é mais incipiente, e os representantes (as elites) usufruem de maior
autonomia, já que os representados não têm condições de
cobrar da imprensa uma fiscalização efetiva do exercício do
poder político. Contudo, não deixa de existir parcialidade e
manipulação nas sociedades desenvolvidas, como bem atestam os
estruturalistas e etnoconstrucionistas.
Assim, nessas duas alternativas, pode-se considerar também a
dicotomia entre uma dominação imposta pela facticidade, por
coações de pressões externas às pessoas dominadas, e outra
negociada através da construção de consensos em torno do
discurso ideológico dominante, portanto, uma dominação baseada
no consentimento ativo (racionalmente motivado) dos dominados sobre o
que consideram como válido. Uma dominação exercida
discursivamente e outra baseada em recursos deslingüistizados
(dinheiro ou poder). Evidentemente que o papel (a qualidade) do
jornalismo nas duas alternativas é substancialmente distinto,
revestindo-se, na alternativa positiva, de uma importância crucial
na aceleração da mudança social, na elevação dos
padrões de convivência e da qualidade de vida, enquanto, no segundo
caso, torna-se fator de opressão, de incremento do potencial de
conflitos e de violência.
É preciso se reconhecer que não é conveniente (ou, pelo menos,
existe um limite de tolerância de acordo com o nível de
consciência da sociedade) para os veículos jornalísticos
controlarem o seu produto final através de atos de arbitrariedade,
como o da manipulação descarada, já que não é fundamentada
discursivamente em razões potenciais. Por isso, não parece ter
muito futuro uma forma de gestão da mídia que garanta o controle de
seu produto final através do exercício da força da violência
hierárquica do sistema, comprometendo a credibilidade do meio de
comunicação, o que se reflete diretamente nos percentuais de
audiência do público
6 O discurso jornalístico e a mudança social
A concepção da atividade jornalística como
significando um discurso - o discurso jornalístico - não é
gratuita, tendo em vista que este se constitui no seu principal produto
e o resultado final do seu funcionamento junto às outras
instituições. Segundo Adriano Rodrigues, enquanto os outros tipos
de discurso restringem-se a um domínio específico da
experiência, constituindo-os como discursos
esotéricos,
o discurso jornalístico caracteriza-se por não ter o âmbito de
sua legitimidade delimitado por um domínio restrito da experiência,
sendo transversal ao conjunto de todas as áreas da experiência
moderna, o que o reveste de um caráter
exotérico2.
É essa distinção que faz os discursos das outras
instituições precisarem funcionar, em geral, como mecanismos de
controle de acesso (exclusão), enquanto o discurso jornalístico
precisa seguir o imperativo (inclusivo) da transparência e da
visibilidade universal, constituindo-se num sistema que torna as
modalidades discursivas esotéricas acessíveis à esfera pública
geral que articula e contribuindo, assim, para homogeneização das
sociedades modernas.
A naturalização é a modalidade estratégica mais importante que
o discurso jornalístico desenvolve para compor as diferenças
entre as instituições na ideologia hegemônica, tornando
"natural" o caráter arbitrário das convenções necessárias
à manutenção da legitimidade do poder exercido pelas
instituições sobre os domínios da experiência. A
tradução que o discurso midiático faz das modalidades
discursivas das outras instituições torna imediatamente
aceitáveis as pretensões legítimas elaboradas historicamente
pelos integrantes dessas instituições, "ao apresentá-las
como naturalmente fundadas e, por conseguinte, indiscutíveis, o que
tem como efeito mais importante a modernização dos fundamentos da
legitimidade das outras instituições" (RODRIGUES, 2002, p.
225).
Norman Fairclough também reconhece na naturalização como a
principal função do jornalismo na reprodução da realidade
social, embora saliente a possibilidade da mudança social, tendo em
vista que "o discurso como prática ideológica constitui,
naturaliza, mantém e transforma os significados do mundo de
posições diversas nas relações de poder" (FAIRCLOUGH,
2001, p. 94).
Segundo o autor inglês, a definição das notícias também é
primariamente decidida pelas pessoas da elite que têm acesso
privilegiado à mídia e são tratadas pelos jornalistas como fontes
confiáveis. E, quando as vozes dessas pessoas privilegiadas são
representadas no discurso da mídia, de forma perlocucionária, na
versão jornalística da linguagem popular cotidiana, há uma
confusão nas identidades, pois as relações e as distâncias
sociais entram em colapso, já que os grupos da estrutura de poder
são representados como se falassem na linguagem dos próprios
leitores, o que torna muito mais fácil a assimilação de seus
sentidos. "Pode-se considerar que a mídia de notícias efetiva o
trabalho ideológico de transmitir as vozes do poder em uma forma
disfarçada e oculta (FAIRCLOUGH, 2001, p. 144).
Por outro lado, o discurso midiático é entendido como sistema aberto
que, da mesma maneira que reproduz as relações de poder, também
pode reestruturá-las, desafiando as hegemonias existentes. Coerente
com a sua preocupação de vislumbrar a perspectiva da
resistência no embate ideológico pela mudança social,
Fairclough defende uma aplicação analítica da teoria do
discurso que contemple a multiplicidade das práticas e suas
contradições como reflexo de processos históricos que são
moldados pela luta entre as forças sociais, na qual a mudança
é uma possibilidade efetiva.
No Brasil, esta tendência também tem se verificado desde a obra
pioneira e antecipatória de Luiz Beltrão, iniciada em 1960, com
autores como José Marques de Melo (2006), Eduardo Meditsch (1992),
Felipe Pena (2005), Alfredo Vizeu (2005) e outros que vêm
contribuindo para consolidação da Teoria do Jornalismo como um
campo de estudo específico.
Da mesma maneira, quanto à linguagem midiática em geral, as diversas
correntes existentes no âmbito da teoria do discurso, portanto, têm
a propriedade de enfatizar o caráter social e intersubjetivo do
processo de construção de sentido público pela mídia
noticiosa. E, entre essas linhas teóricas, que, em geral, são
complementares, sobretudo na denúncia da distorção
ideológica, o modelo habermasiano deve ser reconhecido pelo mérito
de oferecer uma descrição consistente não só da
reprodução da realidade, com a preservação da ordem
institucional estabelecida, através da instrumentalização dos
meios de controle poder e dinheiro pela racionalidade sistêmica
(coação de pressões externas que caracterizam a facticidade),
mas também da mudança social, indicando as condições
pragmáticas universais necessárias à ampliação da base de
construção de consensos autênticos, que podem proporcionar
integrações sociais verdadeiras, legitimadas pelo consentimento
racionalmente motivado dos cidadãos (validade). Só, assim,
poder-se-á reverter a tendência à retração de sentido
(anomia), que caracteriza a colonização do mundo da vida,
através da ampliação do consenso intersubjetivamente
compartilhado, requisito imprescindível para um convívio social
mais justo e democrático.
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Footnotes:
1Heitor
Costa Lima da Rocha é jornalista (UNICAP- 1983), mestre em
Ciência Política (1990) e doutor em Sociologia (2004) pela
Universidade Federal de Pernambuco e ensina desde 1998 no Departamento
de Comunicação Social da Universidade Católica de Pernambuco.
e-mail: heitor@nlink.com.br, heitor@unicap.br.
2O termo
técnico
exotérico é aplicado por Rodrigues (2002, p.
220) às modalidades discursivas que não se destinam a um corpo
institucional particular, mas que se dirigem, sem discriminações,
a toda a sociedade. O termo
esotérico, por sua vez, designa,
ao contrário, os discursos direcionados aos membros de uma
instituição específica, exigindo o domínio das
representações simbólicas próprias, as quais são
relativamente inacessíveis aos estranhos do acervo de conhecimentos
deste subuniverso simbólico.