António Rosas1
Oposição não convencional em Portugal e em Espanha entre 1980 e 1995: Um primeiro estudo comparativo
A análise empírica da oposição não convencional, tanto a nível nacional como comparativo, continua a ser uma área pouco estudada no domínio da comunicação política e ao nível mais vasto da ciência política. Em geral, os trabalhos teóricos e empíricos costumam abordar a comunicação entre os governos/partidos, os media e o público, e esquecer essa realidade incontornável das democracias que são os episódios de contestação não convencional mais ou menos violentos e as suas componentes simbólicas. Neste artigo, tentamos contrariar essa tendência, prosseguindo um projecto já encetado noutro lugar sobre as
contentious politics portuguesas (Rosas 2007). O nosso objectivo, desta vez, será o estudo comparativo das componentes substantivas e simbólicas das oposições não convencionais dos dois países entre 1980 e 1995.
Uma das razões da raridade deste tipo de estudos resulta do enorme manancial de dados que requer para ser significativo. Neste trabalho, basear-nos-emos no excelente
Data Set produzido pelo Professor Ronald Francisco e pela sua equipa da Universidade do Kansas, que para esse período recolheram, organizaram e codificaram milhares de notícias relacionadas com as
contentious politics de 28 países europeus
2. Com a ajuda desse rico manancial de dados, procuraremos comparar de forma ainda tentativa e preliminar os seus padrões de evolução, bem como analisar comparativamente algumas relações que julgamos serem importantes neste tipo de processos. Para alcançarmos o primeiro desses objectivos, utilizaremos, ainda que superficialmente, uma técnica que é ainda pouco utilizada em ciência política e nos estudos da comunicação - a análise estatística das séries temporais. Esta ajudar-nos-á a compreender e a comparar os dois períodos nacionais quanto aos seus padrões de evolução. Seguidamente, complementaremos a nossa análise formal com o exame de algumas regressões. Por último, analisaremos as componentes simbólicas ou de comunicação política das duas distribuições, caracterizando-as individualmente e estabelecendo similitudes e diferenças.
Séries temporais e padrões de evolução
Para avaliarmos globalmente as duas
time series das distribuições com os números dos participantes portugueses e espanhóis relacionados com acções de oposição não convencional durante o nosso período de 16 anos, começamos por logaritmizar e diferenciar as duas distribuições (truncadas de zeros e de NA's). As imagens dos "sinais" resultantes são as das Fig.s 1a e 1b.
Figure 1: Dif./Log. da Vari ável Participantes - Portugal (em cima) e Espanha (em baixo) (1980-1995)
Como se vê, as diferenças são mais quantitativas, ou de grandeza, do que formais. As duas séries não são, claramente, estocásticas, revelando mesmo variações bem enquadradas e semelhantes entre valores idênticos. A primeira constatação é, portanto, a de que as
contentious politics espanholas, durante o período em questão, não foram formalmente muito diferentes das portuguesas, mas foram muito mais densas tanto no número dos episódios como no volume da participação (6529 contra 1388 observações, só para os episódios). Para darmos uma ideia mais clara dessa desproporção, criámos uma
dummy medindo as contagens dos eventos mensais das distribuições nacionais. Os histogramas de frequências e os
density plots resultantes são os da Figura 2. De notar como as distribuições são praticamente invertidas, com o caso espanhol a registar mais de 150 meses de episódios contestatários diários.
Figure 2: Histogramas (em cima) e density plots (em baixo) para Portugal e Espanha
Se não nos ficarmos por aqui e submetermos as duas séries a dois estimadores lineares dinâmicos Prais-Winsten (chamemos-lhes g
1 para o caso de Portugal e g
2 para o caso espanhol) tendo em vista correlacionar o número dos participantes, com os patamares de OSD, ou seja, com os níveis do potencial mobilizador das organizações, verificamos que os episódios contestatários espanhóis revelaram, no entanto, níveis de participação menos correlacionados com as organizações do que os portugueses
3. Por outras palavras, a mobilização protagonizada pelo mais variado tipo de organizações políticas, sejam grupos de interesses, partidos políticos, movimentos sociais, etc., está menos associada, em Espanha, durante o período, co as intensidades de participação, do que em Portugal. As estimativas dos ajustes das OLS dinâmicas são as seguintes:
Table 1: Regressões lineares dinâmicas
|
g1
|
g2
|
OSD_PT |
0.0105*** (0.000) |
|
OSD_SP |
|
0.00131*** (0.000) |
N |
1408 |
6758 |
F |
23.10 |
19.15 |
Prob F |
0.0000 |
0.0000 |
R2 |
0.0361 |
0.0061 |
Rho |
.1303386 |
.0148264 |
AIC |
35600.9 |
178202.0 |
BIC |
35606.1 |
178208.8 |
p-values in parentheses
* p0.05, ** p0.01, *** p0.001
Nota 1: Regressões com estimadores robustos das variâncias.
Os resultados, como se vê, são extremamente baixos, embora sejam estatisticamente significativos
4. Se quisermos, podemos defini-los pelo seguinte contrafactual (CTFT_1):
se apenas tomarmos em linha de conta os efeitos causais dos patamares de mobilização das organizações sobre o número dos participantes portugueses e espanhóis em acções oposionais e inclusivas não convencionais ocorridas entre 1980 e 1995, esses efeitos, medidos estatisticamente, aceitando os pressupostos da regressão linear simples, foram, apesar de fracos, menores em Espanha do que em Portugal.
Para enriquecermos a análise, criamos uma segunda versão do mesmo contrafactual (CTFT_1.2) a partir de duas regressões lineares de classes diferente: um OLS e uma Tobit (censurada para valores de mobilização iguais a zero) com as mesmas variáveis (com as duas distribuições completas, ou seja, não truncadas de zeros e de NA.s). Os ajustes (W1 para Portugal e W2 para Espanha, no caso da OLS, e V 1 e V 2 para as Tobit) foram produzidos com transformações robustas
5. Os novos dados são os da Tabela 2.
Os novos dados reforçam o que dissemos atrás sobre a menor correlação espanhola entre as organizações e os níveis de participação. Embora não pretendamos, neste estudo, aprofundar o significado do CTFT_1, convém desde já notar que o menor grau de mobilização organizacional espanhol não significa um
déficit democrático dos mecanismos não convencionais espanhóis de inclusão e de oposição democráticas. Pode até indiciar uma maior apetência dos activistas espanhóis por outros modos de contestação mais autónomos ou, no limite, uma alteração paradigmática nos modos de acção.
Table 2: Regressões OLS e Tobit (com transformações robustas)
(Intensidades vs. Mobilização)
|
W1
|
V 1
|
W2
|
V 2
|
main |
|
|
|
|
OSD_PT |
0.0102*** (5.03)
|
0.00995*** (4.98)
|
|
|
OSD_SP |
|
|
0.00131*** (4.44)
|
0.00126*** (4.46)
|
sigma |
|
|
|
|
_cons |
|
75980.0*** (5.02)
|
|
131082.0*** (3.55)
|
N |
1408 |
1408 |
6758 |
6758 |
AIC |
35626.0 |
35241.3 |
178204.4 |
172521.3 |
BIC |
35631.3 |
35251.8 |
178211.2 |
172534.9 |
t statistics in parentheses
* p0.05, ** p0.01, *** p0.001
Table 3: Regressões dinâmicas (Prais-Winsten) e Tobit (com transformações robustas)
(Intensidades vs. Mobilização e Temas)
|
S1 (Prais-Winsten)*
|
S1 (Tobit)
|
S2 (Prais-Winsten)**
|
S2 (Tobit)
|
main |
|
|
|
|
OSD_PT |
0.0104*** (0.000)
|
0.0104* (0.012)
|
|
|
iss_PT |
-62.10 (0.078)
|
-5.801 (0.844)
|
|
|
OSD_SP |
|
|
0.000798*** (0.000)
|
0.00123** (0.002)
|
iss_SP |
|
|
-27.63*** (0.000)
|
-22.37** (0.007)
|
_cons |
7107.1 (0.209)
|
|
16523.9*** (0.000)
|
11983.5*** (0.00)
|
sigma |
|
|
|
|
_cons |
|
76005.1*** (0.000)
|
|
130911.4*** (0.00)
|
N |
1032 |
1407 |
5565 |
6755 |
AIC |
25779.1 |
35218.9 |
139445.2 |
172439.0 |
BIC |
25793.9 |
35234.7 |
139465.1 |
172466.3 |
p-values in parentheses
* p0.05, ** p0.01, *** p0.001
Nota: * e ** com regressão Cochrane-Orcutt AR(1).
|
S1a (Tobit)
|
S2a (Tobit)
|
main |
|
|
iss_PT |
72.07*** (0.000)
|
|
iss_SP |
|
16.68*** (0.000)
|
sigma |
|
|
_cons |
76631.9*** (0.000)
|
131167.8*** (0.000)
|
N |
1407 |
6763 |
AIC |
35239.1 |
172665.8 |
BIC |
35249.6 |
172679.5 |
p-values in parentheses
* p0.05, ** p0.01, *** p0.001
Os temas
O segundo e o último contrafactual que apresentamos é aquele que mede as variações das capacidades preditoras relativas dos dois modelos lineares nacionais depois de incluídos os temas. À semelhança do que acontece com os níveis do potencial mobilizador das organizações, os temas também dão indicações sobre os padrões e os níveis da mobilização que além de serem relevantes são bastante intuitivas. Não é de esperar que temas diferentes mobilizem da mesma maneira o mesmo número de activistas e de
bystanders, podendo mesmo transformar-se a variável consoante os
targets sejam os primeiros ou os segundos
6.
Comparando as estimativas de dois ajustes Prais-Winsten e
Tobit, podemos dizer que os temas, no período, e controlando apenas
para a variável medindo a organização, não tiveram efeitos
significativos nas mobilizaçãoes dos dois países, o que é um
contrasenso, provando a necessidade da contextualização e do
controlo para demais vaiáveis. No caso português, os valores rondam
mesmo a insignificância estatística. Com isto queremos dizer que se
tivermos apenas em consideração as capacidades mobilizadoras das
organizações em ambos os países, a inclusão dos temas não
acrescenta valores palpáveis às suas associações
estatísticas com as intensidades verificadas nas mobilizações.
Nos termos de um segundo contrafactual (CTTF_2), poderemos então
afirmar que
se apenas tomarmos em linha de conta os
patamares de mobilização organizacional e os temas que serviram
para moblilizar os activistas (e "bystanders") dos dois países
durante o período em questão, e se aceitarmos os pressupostos
estatísticos, os temas não tiveram um peso estatisticamente
significativo nos valores da participação espanhola e
portuguesa7. É claro que contamos em próximos trabalhos esclarecer
melhor estes resultados, reverificando o nível de análise actual e
acrescentando mais variáveis capazes de transmitir a uma variável
simbólica tão importante como os temas um significado mais correcto
e intuitivo
8.
Se passarmos agora da análise estatístico-formal
dos temas à sua análise substantiva, verificamos que apesar das
diferenças de grandeza e de correlação já apontadas, não
há a registar, no período, grandes discrepâncias entre as
culturas políticas contestatárias dos dois países. Para
mostrá-lo, usaremos os gráficos das páginas seguintes, que nos
acompanhão até ao final do artigo. Relembramos o leitor que este
trabalho é preliminar e não pretende nem contextualizar, nem
exaurir, todas as componentes formais e gráficas dos dados.
Cada uma das Figuras 3, 4 e 5 apresenta dois grupos horizontais
de dois gráficos cada, com a primeira linha destinada a Portugal e a
segunda a Espanha. As colunas da esquerda de cada grupo indicam as
frequências, e as colunas da direita medem a mobilização. Nas
linhas que se seguem, apenas estudaremos as frequências para a
análise da Figura 3.
Se começarmos por comparar as colunas das frequências da
Figura 3, verificamos que, à excepção da questão
autonómica, no caso espanhol, e da questão da amnistia dos presos
políticos, no caso português, os temas mais frequentes do período
foram essencialmente económicos relacionados com os salários com o
desemprego. É de notar, a este respeito, que o cálculo de duas
binomiais negativas regredindo a frequência mensal dos episódios
contestatários mensais (a nova variável MEC -
Monthly Events Count) sobre os temas usados
na mobilização, produziram resultados muito semelhantes (no caso
português, os temas relacionados com os salários e com o desemprego
registaram valores de Pr(z) de
0.00052 e de 0.02768, enquanto que para o caso espanhol os mesmos temas
apresentaram valores de significância
Pr(z)
2e-16)
9. Uma conclusão possível é a de que os temas salariais e do
desemprego estiveram não apenas no topo da agenda contestatária
não convencional dos dois países durante o período como podem ser
responsabilizados por uma grande parte da variação das
frequências mensais dos episódios.
Se deixarmos agora a análise das frequências dos temas para
nos concentrarmos na sua ressonância (a segunda coluna), verificamos
que as performances dos temas foram muito diferentes. Entre os oito
temas que mais moblizaram em Portugal, sete são económicos,
enquanto que no caso espanhol apenas três podem ser considerados como
económicos. Por outro lado, é de notar a diferença
assinalável nos volumes mobilizacionais dos dois países, com a
questão autonómica espanhola a mobilizar mais de três vezes mais
do que o tema dos salários em Portugal. De notar igualmente que o
tema das condições prisionais foi relativamente forte nos dois
países, tanto em frequência como em ressonância.
Em relação ao tipo de acção, os dois países
também apresentaram claras similitudes (Figura 4). Do arsenal das
táticas possíveis, os manifestantes dos dois países utilizaram a
greve geral e a petição como meios preferenciais da acção
colectiva. Os gráficos das frequências dão-nos porém uma
imagem mais sombria, revelando a muito maior radicalização
táctica do caso espanhol. Essas tácticas, que pela sua natureza
violenta, intentam contra o maior dos interesses básicos dos
cidadãos, que é o direito à vida, são liminarmente vistas como
injustificáveis e ilegítimas face à nossa ideia normativa de
democracia, mas são factos positivos que têm que ser e devem ser
estudados.
Se tomarmos, por fim, como referência, a Figura 5, que mostra
o tipo dos agentes ou dos actores que tomaram parte nos episódios de
contestação não convencional, verificamos que os maiores
protagonistas durante esses quinze anos foram os funcionários
públicos dos dois países, com os católicos, as organizações
sindicais e os estudantes a ocuparem também posições de relevo.
Figure 3:
Figure 4:
Figure 5:
Referências
ROSAS, António, "Processos políticos contestatários e temas não convencionais em Portugal - 1980-1995. Alguns resultados preliminares", Working Paper destinado a publicação, Outubro, 2007.
Footnotes:
1Universidade de Santiago de Compostela. E-mail: anjoserosas@gmail.com
2EPCD -
European Protest and Coercion Data. URL: http://web.ku.edu/ronfran/data/index.html. Este artigo cumpre as regras de citação estabelecidas no site. As bases de dados e uma parte das conclusões do nosso projecto serão oportunamente publicadas
online em http://antoniorosas.wordpress.com.
3A variável OSD também está disponível no
Data Set.
4Embora aqui nos interesse criar um modelo liminar ou mínimo que permita inferir comparações estatísticas pertinentes entre vários contrafactuais tivemos o cuidado de testar vários modelos alternativos (quadrático, cúbico, exponencial) para avaliarmos o grau da dependência dos contrafactuais em relação aos modelos. Todos os resultados confirmaram a nossa convicção de que mesmo na opção minimalista nenhum dos contrafactuais pode ser invalidado por não ser empiricamente testável.
5Usamos uma regressão robusta com erros padrão com
sandwich estimators e calibrados no valor default (
HC - standard error is heteroskedastic consistent). Os modelos ARCH e GARCH não foram usados no caso das regressões dinâmicas.
6Deixamos estas e outras questões para trabalhos posteriores.
7Por comodidade de exposição só apresentamos as estimativas mais
importantes.
8Se tomarmos apenas em consideração as associações entre
intensidades e temas, os resultados são muito diferentes, como se
vê na pequena tabela inferior da página seguinte. Os temas em
Portugal, medidos isoladamente, foram quase cinco vezes mais influentes
sobre a intensidade do que os espanhóis.
9É uma variável muito aproximada, já que se baseia nas frequências
da variável eventos/não eventos e não tem em conta o facto, por
exemplo, do mesmo episódio durar vários dias ou haver mais do que
um episódio por dia sobre o mesmo tema ou sobre temas diferentes. Em
futuras trabalhos tencionamos afinar esta variável, do mesmo modo que
serão criadas
dummies para medirem
outros efeitos.