José Ricardo Carvalheiro1
Da nação à região: as eleições legislativas na imprensa regional
O conceito
O conceito de enquadramento distingue-se do agendamento, noção desenvolvida pela teoria conhecida como agenda-setting e que está ligado à selecção e hierarquização dos assuntos no espaço público, assim como à atenção, que também se põe do lado das audiências, a certos acontecimentos em detrimento de outros. A teoria do agendamento é porém redutora, porque as notícias não são apenas seleccionados, mas sim construídas (Schudson, 1997). Daí, a importância da noção de enquadramento para dar conta do modo como se define um tema, sendo essa definição que permite dar-lhe alguma interpretação (McQuail, 2003: 348), funcionando como moldura para o campo de visão (Sousa, 2004) ou como estrutura profunda que contém instruções para decifrarmos uma situação (Silveirinha, 2005). Originalmente formulado por Goffman (1976), o conceito de enquadramento, ou framing, referia-se ao uso de quadros interpretativos construídos socialmente e que, ao colocarem os indivíduos sob referências partilhadas, lhes permitem dar sentido às relações sociais. A teoria de Goffman, concebida para as relações face-a-face, tem sido incorporada pelos estudos dos média, onde se considera que os textos jornalísticos, através de elementos como os títulos, o lead ou as citações destacadas, apresentam estruturas que enquadram os eventos e lhes definem sentidos. A análise de Gitlin à cobertura da guerra do Vietname constituiu um marco importante no desenvolvimento do conceito, que identifica padrões persistentes de selecção, apresentação, ênfase e interpretação através dos quais os jornalistas organizam os discursos (Gitlin, 2003). Embora os sentidos produzidos pelas audiências a partir das notícias seja uma questão mais complexa3, o conceito de enquadramento é frequentemente utilizado de uma forma que remete para a questão dos efeitos, quer numa versão positivista, quer numa versão crítica, mas num pendor mais qualitativo do que acontece com os estudos de agendamento. O conceito é, no entanto, muito vasto e usado para captar diferentes aspectos do discurso mediático, pelo que, numa tentativa de aumentar o rigor da sua aplicação, Mauro Porto (2004) propõe a distinção entre enquadramentos noticiosos e enquadramentos interpretativos, sendo essa perspectiva que adopto nesta pesquisa. Os enquadramentos noticiosos são padrões de apresentação, selecção e ênfase utilizados nos relatos jornalísticos (Porto, 2004: 91). É também possível incluir aqui a capacidade de não prestar atenção, de manter out of frame (Goffman, 1976) determinados aspectos possíveis de um evento. Os enquadramentos noticiosos revelam, por exemplo, atitudes dos jornalistas face aos políticos e as suas formas de encarar a actividade política. Os enquadramentos interpretativos, por seu lado, estão ligados a uma determinada cultura, tendo no centro de cada tema uma ideia central organizadora que atribui sentido aos eventos e tece conexões entre eles (Gamson e Modigliani citados em Porto, 2004: 81). A forma como as notícias são enquadradas tende a traduzir os valores dominantes num contexto social (Meyers, 1997), mas também pode configurar disputas entre vários repertórios interpretativos, o que é comum na comunicação política e remete para a questão dos enquadramentos poderem ser plurais ou monopolizadores de significados (McQuail, 2003: 349). Portanto, tal como acontece com o agendamento, também o enquadramento não deve ser visto como uma acção exclusiva dos jornalistas, pois há framings implícitos no discurso dos actores sociais e políticos e na forma como os factos chegam às redacções. As técnicas aqui usadas para identificar os enquadramentos inserem-se no campo da análise de discurso, incidindo sobre items como os géneros narrativos, os papéis semânticos dos actores, as escolhas lexicais e sintáticas ou os modelos de intertextualidade (Van Dijk, 1997; Van Leuween, 1997; Silveirinha e Peixinho, 2004). Outro aspecto relevante para o enquadramento tem a ver com o modo de interpelação. Através da forma como interpela, o texto posiciona o sujeito que o lê (Edley, 2001), dá-lhe, segundo a conceptualização de Goffman, uma chave de leitura que consiste num lugar a partir do qual se constrói o sentido. Um dos níveis a que funcionam as keyings é pela activação de pertenças a entidades colectivas (Silveirinha, 2005), interessando-nos aqui as pertenças de índole territorial como a nação e a região.O jornal
O jornal é um sujeito semiótico (Rebelo, 2000) reconhecível pelos leitores devido às suas regras, projectos, estilo e perfil. Mercê das suas circunstâncias históricas e de um trajecto pontuado por episódios definidores, o Jornal do Fundão (JF) foi constituindo o seu carácter de sujeito semiótico simultaneamente na relação com o poder político, onde criou a ideia de independência e defesa de causas sociais, e na relação com o território, onde suplantou o paroquialismo e se tornou uma bandeira regionalista. Durante o regime ditatorial este estatuto foi marcado por casos como a suspensão pela censura ou a defesa de populações vítimas do bócio. No regime democrático, o pluralismo político permitiu a expressão mais aberta de reivindicações regionalistas, que tiveram um momento fulcral no caso do túnel da Gardunha. A história do jornal e das suas relações com a esfera política é indissociável do percurso do seu fundador, director e proprietário durante mais de cinco décadas. António Paulouro era um membro de uma elite local cuja actividade editorial se entremeou com acções políticas, como a vice-presidência da Câmara do Fundão nos anos 50 e o cargo de deputado à Assembleia da República nos anos 80. Nessa medida, a relação entre a instituição mediática e os actores políticos não configura a clássica separação entre jornalismo e esfera do poder. Nesta análise, estão em causa dois tipos de texto jornalístico. Por um lado artigos de teor noticioso, com destaque para o género reportagem, mas incluindo também peças escritas a partir de documentos dos partidos. Por outro lado, editoriais e outros artigos de opinião que expressam a posição do jornal. À luz do exposto no ponto anterior, considero que as reportagens elucidam mais directamente sobre o tipo de enquadramento noticioso, ao passo que os editoriais constituem textos privilegiados para analisar o enquadramento interpretativo (Ponte, 2002). No primeiro caso, interessam sobretudo os ângulos de abordagem da notícia política em tempo eleitoral e as atitudes jornalísticas face aos actores políticos nacionais. No segundo caso dou especial atenção às identidades do sujeito-leitor que os textos interpelam e à identidade política colectiva que o jornal constrói e em que se posiciona. A perspectiva diacrónica visa apreciar como um e outro tipo de enquadramento são postos em jogo e evoluem ao longo de duas décadas. A escolha das campanhas eleitorais analisadas não foi uma selecção feita a priori com base exclusivamente na história do regime político, mas surge após uma primeira leitura da abordagem do JF a todas as eleições legislativas desde a instauração da democracia. Esta leitura transversal permitiu perceber as campanhas de 1985, 1991 e 2002 como momentos marcantes de mudança ou consolidação de determinados modelos jornalísticos e linhas de discurso político, o que não resulta apenas de transformações no cenário da política, mas também da própria história do jornal.O enquadramento noticioso
Até à primeira metade dos anos 80 decorre no JF o que se pode chamar uma pré-história do jornalismo dedicado ao fenómeno eleitoral, dado que tudo tende a resumir-se a artigos breves com a enumeração dos candidatos e a descrição do seu perfil pessoal, que pode incluir um tom laudatório acerca de habilitações e cargos das personalidades apresentadas. As eleições de 1983 inauguram a abordagem jornalística à eleição legislativa4. Surgem, embora timidamente, as primeiras notícias ligadas à campanha, aparece o primeiro editorial directamente focado nas eleições e o jornal estreia-se na inquirição directa de candidatos pelo círculo eleitoral, organizando uma mesa-redonda em público e transcrevendo-a nas suas páginas. As eleições de 19855, onde António Paulouro seria candidato eleito pelo PRD, indicia o início de uma mudança no discurso jornalístico, na medida em que as reportagens publicadas albergam duas estruturas narrativas de tipo diferente. A primeira, tradicionalmente usada até aqui e ainda predominante, caracteriza-se pelo apagamento da componente interpretativa do repórter na cobertura de comícios e sessões oficiais. Por regra, os artigos preenchem o título com um enunciado directo do principal actor político, começam o texto com uma citação deste e reproduzem períodos completos do seu discurso, entremeados com a nomeação ou a citação de outros políticos intervenientes. As únicas frases em que o jornalista assume a autoria do discurso compõem-se de elementos factuais básicos (onde, quando, quem) ou tendem a ser escolhas lexicais e sintácticas eufóricas, que acentuam o tom positivo da peça ao descreverem o actor político como "recebido com grande entusiasmo" ou "diversas vezes interrompido por aplausos". Não se trata de puro relato dos factos, mas sim de um tipo de enquadramento noticioso, como o exemplifica uma descrição eufemística da "assistência que enchia parcialmente o ginásio". Este tipo narrativo enquadra uma relação de indiscutida autoridade da esfera política para com os cidadãos, onde os actores institucionais surgem como únicos enunciadores investidos de legitimidade para a expressão no campo político e sugere uma atitude de reverência e passividade do próprio repórter perante os protagonistas da política. Este modelo constitui um enquadramento celebratório6 . Um segundo tipo de estrutura, que aparece pela primeira vez na cobertura à digressão de Cavaco Silva em 1985, corresponde a uma narrativa que assume abertamente o ponto de vista jornalístico. Esta narrativa centra-se num fio interpretativo em que o repórter avalia as acções de campanha, acentuando alusões que visam conferir-lhe um estatuto de independência face ao poder, o que pode ser feito com frases disfóricas ("na tentativa de mobilizar um eleitorado cada vez mais indiferente"), com recurso à ironia ("não foi aquilo a que se pode chamar um banho de multidão") ou pela sugestão de contradições dos candidatos e dissenções no interior dos partidos. Nesse contexto, tende a diminuir o espaço e a proeminência das citações, passando o discurso dos políticos a ser inserido de forma truncada dentro de enunciados mais vastos construídos pelo jornalista. A reportagem em causa coloca ainda Cavaco Silva num papel semântico passivo, até então inédito. Pela primeira vez, o político não é o agente que chega e fala, mas sim o paciente que é alvo de maior ou menor atenção da população. Por outro lado, o aparecimento desta estrutura também corresponde à estreia na cobertura de situações até aqui não reportadas pelo jornal, como a passagem pelas ruas e o contacto informal com as populações, assim como inaugura a recolha de declarações por inquirição dos jornalistas e não apenas a sua extracção dos discursos proferidos em comícios. Esta prática de inquirição directa ir-se-á constituindo gradualmente como uma marca de profissionalismo dos repórteres e como mecanismo pelo qual os jornalistas constróem a sua imagem de independência e previnem eventuais acusações de funcionarem como correia de transmissão que apenas amplia o que os políticos tomam a iniciativa de dizer. Este conjunto de elementos resulta num enquadramento dessacralizador, na medida em que dessacraliza o político nacional e transmuta o povo de um quadro de glorificação dos líderes para um quadro mundano e contingente. Note-se, porém, que na campanha de 1985 esta estrutura de reportagem não está consolidada no paradigma jornalístico a nível regional, coexistindo na mesma página com artigos do tipo anterior e não fazendo regra para o futuro próximo. É preciso ter em conta que a década de 80 corresponde a uma fase titubeante na transição da imprensa regional para a profissionalização, marcada por avanços e recuos. Daí a circunstancialidade de um acto eleitoral poder coincidir com um período de esvaziamento da redacção, influenciando assim o tratamento da campanha. É o que parece acontecer com a eleição de 1987, onde a própria abordagem jornalística se esfuma através de uma ausência quase completa de artigos e reportagens sobre a campanha. A ilustração desse esvaziamento são as chamadas de primeira página acerca de comícios, que na realidade remetem para anúncios publicitários acerca das manifestações partidárias. A eleição de 1991 dá-se numa fase mais avançada de profissionalização da redacção, voltando a haver uma série de reportagens. A cobertura da campanha corresponde a um recuo do enquadramento celebratório, rareando, por exemplo, os títulos com citações dos candidatos, que eram a regra na década anterior. No entanto, mais do que representar a afirmação do enquadramento dessacralizador de per si, as reportagens de 1991 caracterizam-se pelo entrelaçamento entre este e o enquadramento celebratório dentro da mesma peça, naquilo a que se pode chamar estruturas de enquadramento plural. Esta coabitação de tons positivos e negativos, assim como de activação e passivação dos actores políticos, insere-se num novo tipo de narrativa de campanha que acentua aspectos emotivos e coloca-os em posição tópica7. As descrições do cenário e do ambiente, as alusões ao estado de espírito dos candidatos, as incidências e os percalços de percurso, ao serem introduzidos, modificam uma narrativa que antes era inteiramente factual e fazem emergir uma narrativa mista, com elementos característicos do género de fait-divers. Trata-se, assim, de uma popularização do discurso jornalístico, que em si não contém obrigatoriamente nenhum menosprezo pela política, mas com a qual acaba por sobrevir uma secundarização das informações de teor político e uma prevalência de enquadramentos episódicos sobre os enquadramentos temáticos (Iyengar citado em Porto, 85). Surge também aquilo que é designado por "enquadramento de corrida de cavalos", em que os candidatos são apresentados mais como competidores entre si do que através de propostas políticas8. A eleição de 2002, altura em que a profissionalização da redacção está consolidada e o jornal já é propriedade de um dos maiores grupos portugueses no sector dos média apresenta um número de peças informativas claramente superior às das campanhas de 1985 e 19919. Desaparecem, porém, as reportagens de rua e com elas as narrativas mais coloridas e popularizadas, permeadas com aspectos emotivos, com a reacção das populações e onde cabia a citação de cidadãos anónimos. Regressa assim uma cobertura mais atida aos momentos formais de campanha e que assenta no ponto de vista dos candidatos, recolhido em comícios, sessões de apresentação ou meros programas enviados à redacção. Regressa, pois, o enquadramento temático, onde predomina o conteúdo político. Os textos tendem a fixar-se numa narrativa factual, sendo mais frequente o apagamento do repórter como intérprete do que a assunção de um discurso explicitamente interpretativo. A verbalização dos títulos - "Durão diz", "Socialistas puxam", "CDU exige", "Bloco insiste", "Ferro garante" -, imputa actos aos políticos, no que constitui um enquadramento distanciado, no sentido em que os jornalistas representam linguisticamente uma não cumplicidade com os políticos. No entanto, nas páginas do jornal voltam a prevalecer os artigos colonizados por citações, que conferem total coerência ao discurso de cada partido e que assim produzem um enquadramento que também é oficialista. São minoritárias as reportagens com uma trama política construída pelo repórter10, o que leva a um retrato institucional e rotineiro da campanha eleitoral, em que o know-how profissional se sobrepõe a qualquer perspectiva cívica. Trata-se, ainda, de um enquadramento distanciado também no sentido de que a fixação das reportagens em sessões formais introduz uma representação de distância entre candidatos e eleitores.O enquadramento interpretativo
Os enquadramentos interpretativos, mais do que relevarem de procedimentos e técnicas do jornalismo, emanam de actores sociais diversos e ligam-se a ideologias e discursos culturais que circulam na sociedade e que disputam legitimidade face a outras leituras da realidade. Na década de 80 - eleições de 1983, 1985 e 1987 - o tempo de campanha não inclui nenhum editorial que aborde a escolha do governo na perspectiva dos interesses e das consequências regionais. A votação é sempre enquadrada como questão nacional e o leitor é interpelado como cidadão português, sendo que a pujança das afinidades ideológicas e das lealdades partidárias eclipsam as pertenças locais. O enquadramento temático mais forte nos editoriais desta altura é um enquadramento moral, seja centrado na ética do bem público, seja na ética dos valores democráticos. Através de contrastes metafóricos ou de dicotomias lexicais positivas e negativas representa-se o país num momento dilemático da sua vida colectiva e a prática política como adulteração do ideal cívico11. Este tipo de enquadramento é coerente com o surgimento de um novo partido político, o PRD, ancorado numa cruzada moral contra a degradação da política e do qual o director do jornal seria deputado. Se regressarmos às reportagens da campanha de 1985 vemos que também o género noticioso interpelava o cidadão enquanto eleitor nacional. Não só o discurso dos políticos nacionais parece reservar então um lugar marginal para as questões regionais, como todos os títulos escolhidos pelo jornal se referem a temas de estado. A eleição do parlamento é, portanto, enquadrada como um momento que diz respeito aos residentes da região sobretudo enquanto portugueses. Num segundo plano da hierarquia do jornal é possível, porém, descortinar a emergência, desde 1983, de um enquadramento temático nas desigualdades regionais. Nesse ano, o tema surgiria apenas nos títulos do debate entre candidatos pelo círculo de Castelo Branco. Em 1985, volta a aparecer no mesmo plano, quando a primeira pergunta feita pelo jornal aos candidatos assenta numa pressuposição de verdade "os governos apenas têm aumentado as assimetrias", mas também já surge em títulos de artigos de análise sobre demografia ou economia, bem como na transcrição de um discurso de Ramalho Eanes. Neste contexto, chama a atenção o aparecimento e a crescente assiduidade do vocábulo "interior". A princípio a ideia de "interior" é menos frequente que a ideia de entidade regional, patente em expressões como "desenvolvimento da região", "problemas do distrito" ou "desequilíbrios regionais". Mas gradualmente vai ganhando peso e proeminência, através de uma história que a análise dos actos eleitorais deixa perceber. Em 1991, pela primeira vez em tempo de campanha para o parlamento, um espaço de carácter editorial posiciona os leitores de forma articulada enquanto cidadãos nacionais e enquanto cidadãos da Beira Interior12. Em dois textos que se sucedem na mesma coluna de opinião (13-9-91), as primeiras frases definem as diferentes identidades a que se dirige a interpelação aos eleitores. O primeiro trecho, intitulado "Clientelas" começa com o seguinte enunciado: "Em poucos países, como em Portugal, a cunha se transformou numa instituição com tantas e tão fundas raízes". O jornal coloca o leitor na pele de português, eleitor de um poder político que sobrevive e manobra com recurso às suas clientelas políticas, tratando-se de um enquadramento moral na linha de outros editoriais em eleições anteriores. Mas o segundo trecho, com o título de "Ladrões de estradas", muda o enquadramento, iniciando-se assim: "O que se está a passar em relação às estradas do nosso descontentamento é um escândalo que chega a pôr em causa o Governo como pessoa de bem". O pronome pessoal (em "nosso descontentamento") constrói um sujeito colectivo que abarca jornal, leitores e cidadãos da região, para depois enquadrar as eleições legislativas como momento de julgar a administração central ("pôr em causa o Governo como pessoa de bem") em função dos seus actos para com a região. Este texto funda, na verdade, um enquadramento regionalista em tempo de campanha para o parlamento, cujo elemento fundamental é a interpelação do leitor na sua identidade local. Jornal e leitores são discursivamente postos em comunhão na mesma margem de uma dupla dicotomia: região-governo e região desfavorecida-regiões favorecidas. O ano de 1991 parece, de facto, ter marcado uma viragem , na qual assume um papel central o episódio sobre a (não) construção do túnel rodoviário da Gardunha. Colocado na primeira página durante meses, o "quadrado" sobre o túnel da Gardunha consistia numa foto-legenda com a imagem em branco e onde a ironia era usada para criticar a quebra de uma promessa governativa13. Configurando um género jornalístico impreciso, a meio caminho entre o cartoon e o editorial, "o túnel" foi concebido e redigido pelo director do jornal e funcionou como verdadeira arma política numa altura em que António Paulouro já se encontrava desvinculado da vida partidária e da actividade política formal. A sua eficácia residiu no facto de se alicerçar num discurso cultural popular sobre a não fiabilidade dos políticos, que articulou com a ideia de desigualdades e isolamentos territoriais, produzindo a ideia de descrédito agravado em relação ao interior. Um editorial assinado por António Paulouro, em 20 de Setembro, ultrapassa a mera perspectiva de região e enquadra abertamente a questão governativa como dualidade política Litoral-Interior: "apesar das promessas (...) o governo não diminuiu o fosso". Está lançada, a partir deste enunciado, a reconversão do tema das assimetrias regionais em temática nacional. Em 1991 dá-se, portanto, um duplo movimento de reenquadramento das eleições legislativas: primeiro regionalizando a avaliação dos políticos; depois recolocando a defesa regional como questão de estado e legitimando-a assim como tema das eleições para os órgãos centrais. Com a ideia de interior no cerne do discurso, a defesa da região deixa de ser um regionalismo para passar a inserir-se numa visão de conjunto, cujo desígnio último é o desenvolvimento de todo o país. Note-se que o uso de maiúsculas no vocábulo Interior é recorrente nesta fase do JF e, se a linguagem revela as disposições culturais e ideológicas, esta substantivização do interior como nome próprio pode ser lida como desejo de autonomização e de construção de uma entidade política14. O editorial em causa, com o título de "Intervalo", é altamente ambíguo, dado que proclama a independência política do jornal e assegura dar voz a todos os partidos "em condições rigorosamente iguais", mas sugere ao mesmo tempo que a defesa dos interesses regionais legitima um parêntesis na neutralidade ("Sobram razões para repetir que o governo (...)"), ou seja, ergue a defesa da região a um plano de maior importância que a isenção partidária, mas fá-lo apoiado na ideia de "interior" e de um desquilíbrio que já não é regional, mas sim nacional. Procurando fazer uma genealogia, embora muito limitada, do uso da entidade "interior" no JF, recorri à compilação dos textos publicados sobre o regadio da Cova da Beira, desde os anos 50 até 199015. O que se verifica até meados dos anos 70, é que a região, seja agregada à província das "Beiras" ou como território mais restrito da "Cova da Beira", é representada enquanto uma região entre regiões, tendo termos de comparação como o Alentejo ou o Algarve. Isto é comum quer aos artigos emanados da redacção, quer aos textos de colaboradores exteriores, quer às intervenções de representantes institucionais, correspondendo portanto a um enquadramento do território que é culturalmente partilhado. Em 1975, surge pela primeira vez no âmbito deste tema a enunciação do regadio como uma "opção fundamental para o desenvolvimento do interior do país", num artigo assinado por Duarte Simões, na época director do Instituto Politécnico da Covilhã. Progressivamente, a noção de interior, bem como as relações entre interior e litoral, passam a figurar nos artigos com maior frequência e o termo parece ter tido um impulso com a sua institucionalização na orgânica do ministério da Agricultura, a partir de 1978, através da designação de Beira Interior. Na viragem para os anos 80, a expressão já aparece em reportagens do jornal sobre o regadio e sobre as atitudes do poder central. Estes dados indiciam, portanto, que antes de chegar ao cenário das campanhas eleitorais, a noção de interior começou a circular paulatinamente, dez anos antes, entre algumas elites regionais, das quais a direcção do jornal também fazia parte. A emergência desta entidade territorial ter-se-á desenvolvido dentro de um processo mais vasto de recomposição semântica da geografia nacional, que se foi transmutando de um mosaico de regiões para o par dicotómico litoral-interior, que substitui a antiga dicotomia Lisboa-província, e em que cada um dos termos adquire uma forte carga cultural e simbólica. O termo interior tem hoje um sentido culturalmente partilhado à escala nacional, que condensa as ideias de arcaísmo socio-económico, rusticidade das populações e anquilosamento cultural. A ideia de interior simboliza, em suma, um cúmulo de desprestígios que o aproximam da condição de estigma. Por outro lado, constitui também uma entidade política simbólica, que designa o território sem poder, sem peso eleitoral, sem capacidade de captar recursos e de influenciar o processo da sua distribuição pelo estado. Até aqui, esta representação de interior tem motivado a retórica política da solidariedade e da necessidade de reequilíbrio nacional, mas o desgaste de tal discurso e o cenário transnacional cada vez mais competitivo podem levar à assunção política clara da secundarização do interior em favor de estratégias de concentração de recursos nos núcleos mais qualificados do país16. Ao nível das reportagens de campanha, a eleição de 1991 ainda não introduz o enquadramento temático focado na questão territorial e na discriminação regional, que só mais tarde chegará às narrativas factuais escritas pelos repórteres. Nesse momento, ele só emerge no discurso de alguns actores políticos, mas tendencialmente sem posição tópica nos textos, e fortemente nos artigos de opinião. Exemplo paradigmático é o texto "Só as promessas não chegam" (4-10-91), publicado nas vésperas do acto eleitoral e que, não sendo assinado, manifesta a posição institucional do jornal. Aqui, o sujeito interpelado é o beirão, condição inclusiva do jornal e dos leitores conotada de proximidade afectiva na expressão "desta Beira". E a região é construída como identidade supra-local cuja representação como "um território" ou "nó de terra" apaga os limites concelhios. Este enquadramento sugere que a eleição parlamentar, ao basear-se em círculos eleitorais que agregam as micro-entidades políticas existentes, acaba por proporcionar um momento privilegiado para a construção de um imaginário político mais vasto que o dos municípios, ocasião essa que é tomada em mãos por alguns actores regionais, entre os quais figuram o JF, mas também determinados partidos e figuras partidárias. O carácter progressivo deste processo é patente quando, nas eleições seguintes, o enquadramento regionalista e o recurso à noção de interior penetram no próprio género reportagem, aparecendo em força nos títulos da campanha de 1995. Aqui, surgem títulos em que cai o substantivo Beira e fica apenas o ex-adjectivo interior transformado em nome próprio: "Nogueira por terras do Interior" ou "A grande batalha é a defesa do Interior". Esta nova unidade política simbólica é manejada tanto no discurso político do segundo título (uma citação) como no discurso jornalístico do primeiro, que é uma descrição de lugar onde a associação do vocábulo "terras" sugere uma comunidade telúrica e ruralista. Na eleição de 2002, o sujeito mais frequentemente interpelado nas reportagens de campanha já é o cidadão da região. A narrativa dos repórteres enquadra a questão eleitoral sob o prisma do interesse regional e põe sistematicamente em título essa temática, num contraste flagrante com o que acontecia nos anos 80: "Durão diz que a prioridade é desencravar o interior", "CDU exige reforço da descentralização"; "Ferro Rodrigues garante novo papel para o distrito". O enquadramento surgido nas reportagens sobre o Partido Socialista em 2002 é particularmente interessante porque resulta de um percurso e de uma relação dialéctica entre os média, neste caso o JF, e os actores políticos, entre os quais o PS se mostrou a força política mais disponível para partilhar com as elites locais um enquadramento regionalista das eleições nacionais e acabou por assumir esse discurso como seu. Isto deu-se em particular com alguns dos seus dirigentes, sobretudo António Guterres e José Sócrates, num papel facilitado pela proximidade ideológica com a direcção do JF. Veja-se, logo nos anos 80, nas Jornadas da Beira Interior, os pontos de contacto entre o discurso de José Sócrates e as posições do JF e de António Paulouro. Ambos assentam na ideia de coesão regionalista, expressa por Sócrates como "um consenso das forças políticas regionais" e por Paulouro como a comunhão de "pessoas de todos os quadrantes (...) que ajudarão a mudar o destino desta área desfavorecida". Também na campanha de 1985 Guterres proclama "queremos a regionalização, (...) queremos ser patrões de nós próprios" e Paulouro argumenta que "ninguém melhor que nós, os da Beira Baixa, conhece as angústias do abandono". A apresentação do programa eleitoral do PS às eleições de 1985, numa sessão com Guterres e Sócrates (13-9-85), pode aliás ser considerada a primeira peça de reportagem de campanha do JF em que predomina o tópico da defesa da região como um todo e onde a interpelação fundamental é feita ao cidadão da Beira interior e não ao eleitor português. Este discurso contrasta, na altura, com os discursos de pendor mais nacional do PSD e mais moralista e genericamente descentralizador do PRD17. O caminho que o JF e o Partido Socialista percorrem a partir daqui é relativamente paralelo quanto ao enquadramento regionalista da eleição de deputados e da própria governação, e esse percurso desemboca na campanha de 2002 em reportagens com títulos como "Socialistas puxam dos galões", "Pusemos o distrito no mapa" e "Maria Elisa é uma pára-quedista". O episódio em torno da candidata do PSD, Maria Elisa, como alguém exterior à região, assumiu uma enorme relevância nesta campanha eleitoral porque se insere num enquadramento de longa duração acerca de uma dicotomia nós-eles, construída através da representação dual interior-litoral. Nós esquecidos, menosprezados e com auto-conhecimento da região. Eles poderosos, sobranceiros e longe do terreno. José Sócrates cavalga essa narrativa - "aqui no distrito não há parolos" (8-3-02) - e a reportagem do JF difunde-a, incorporando um enquadramento que não se caracteriza tanto pela corrida de cavalos, mas mais pelo confronto verbal, a que podemos chamar luta de galos18. Em todo o caso, só o caminho percorrido pelo enquadramento regionalista permite este tipo de interpretação política e jornalística, difícil de imaginar numa eleição duas décadas antes, onde nenhum discurso beliscava os actores vindos do centro do sistema. É evidente que, nesta altura, já todos os partidos afinam por um discurso mais ou menos regional, mas sem o capital de implantação que é dado ao PS pela longa prática desse discurso e pela sua articulação com algumas decisões do governo de Guterres. Enquanto candidato a primeiro-ministro, António Guterres é, aliás, legitimado num texto de carácter editorial do JF (15-9-95) pela pertença simbólica à terra: "toda a gente sabe que (...) tem raízes na região, é daqui o seu universo de afectos, reclamou há muito (...) a condição de beirão". Neste enunciado, o vocábulo "daqui" tem o papel fulcral na representação de Guterres como um dos nossos. Mas, curiosamente, à medida que o enquadramento do género noticioso se vai tornando mais regionalista, os editoriais durante a campanha de 2002 regressam a uma perspectiva nacional, agora enquadrada numa narrativa de desencanto com a política. O sujeito interpelado é o cidadão vítima do "discurso rasteiro e vazio", da "partidarite" e do "empobrecimento democrático". Trata-se de um enquadramento crítico, mas que acaba por estabelecer uma passivação do eleitor face aos protagonistas da política, expressa em enunciados como "chamados a votar", "sacríficios que nos serão pedidos" ou "narcotizados pelo espectáculo do sistema". Mesmo exortando os leitores à não demissão cívica - "façam o favor de participar" - o tom é de cumprimento esforçado do dever, dando a ideia de que o próprio colunista já não acredita em resultados dessa participação. Esta interpretação desconfiada da política trespassa por vezes para os textos noticiosos, quando as reportagens de comícios sugerem dúvidas sobre a credibilidade dos candidatos quanto ao conhecimento das regiões ou à sua real vontade de as defender. Em alguns casos, esse enquadramento surge logo no lead: "Pina Moura cometeu a gafe do comício: atribuiu 24 concelhos ao distrito"; "Durão acusou o PS de não ter cumprido as promessas, mas também não se comprometeu".Notas conclusivas
Ao longo dos últimos vinte anos deu-se uma transformação, gradual mas profunda, na forma como o JF enquadra as eleições legislativas, ou seja, uma alteração do sentido atribuido à escolha de deputados e do governo nacional. Esta transformação foi, em traços largos, um movimento geral que tomou as seguintes tendências e envolveu as diversas vertentes:(a) o enquadramento noticioso contido nas reportagens de campanha: celebração do poder nacional ® dessacralização ® distanciamento
(b) o enquadramento interpretativo dos editoriais: governo do país ® interesses da região ® desencanto com a política
(c) o sujeito interpelado: cidadão nacional ® cidadão da região
Referências Bibliográficas
-
Edley, Nigel (2001), "Analysing Masculinity: Interpretative Repertoires, Ideological Dilemmas and Subject Positions", em M. Wetherell, S. Taylor e S. J. Yates (eds.), Discourse as Data, Londres/Milton Keynes, Sage/Open University.
- Fairclough, Norman, 1998, "Political Discourse in the Media: An Analytical Framework", em A. Bell e P. Garrett (eds.), Approaches to Media Discourse, Oxford, Blackwell.
- Gitlin, Todd (2003), The Whole World is Watching, Berkeley/Los Angeles/Londres, University of California Press.
- Goffman, Erving (1976), Frame Analysis: An Essay on the Organization of Experience, Cambridge, Harvard University Press.
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