Voltar à página inicial da revista Estudos em Comunicação

ScopusErihEbsco Host - Research DatabasesUrlrichs Web - Global Serials DirectoryDOAJ WebLatindex

Construção do homem público através do teatro: a imagem de Getúlio Vargas construída pelas apresentações brasileiras

Eliza Bachega Casadei1

2008

Quando a linguagem é separada do fluxo do discurso e é condensada em alguma situação física e visível enquanto imagem, ela adquire todo um sistema de novos significantes. Muitas vezes, quando isso acontece, uma situação caracterizada por um encadeamento de eventos complexos se modifica e se transforma em uma situação de fácil entendimento para o espectador, pelo simples motivo de ser capaz de resumir claramente uma situação.
As peças teatrais que trabalham com sátiras são mídias capazes de proporcionar esse entendimento. Assim como a charge gráfica, as peças teatrais de tipo chargesco e do tipo satírico abusam da personificação "de um princípio ou idéia abstrata que, no teatro, é realizada por um personagem revestido de atributos e de propriedades bem definidas (a foice para a Morte, por exemplo)" (PAVIS, 1999).
Uma outra característica da charge e da sátira teatral é o fato de que elas retratam fatos do presente recente através de interpretações próprias e com o recurso do humor como elemento de ligação fundamental. E é por isso que podemos afirmar que "a força e o perigo do cartunista", e, nesse caso, portanto, também do autor teatral, "estão no fato de ele apelar para essa tendência e nos facilitar a abordagem das abstrações como se fossem realidades tangíveis. Em outras palavras, o cartunista apenas assegura o que a linguagem preparou" (GOMBRICH, 1999: 128). Podemos dizer, portanto, que a grande atração de peças teatrais que tratam de temas políticos é oferecer uma realidade didaticamente sensível a imagens abstratas e resumir claramente uma situação:
Se rimos ou não, isso vai depender da seriedade do problema. Se os cartuns serão ou não eficientes como propaganda e nos farão mudar de opinião, isso também é uma pergunta mais fácil de formular do que de responder. (...) É possível que sejamos como as crianças, que são facilmente logradas com uma resposta. Qualquer comparação que torne o não-familiar mais claro em termos de algo mais familiar nos dará a satisfação do entendimento pretendido, qualquer que seja o mais que ele possa revolver em nós. Mas não será isso exatamente, outra vez, o que denominamos função do mito? O primitivo inquiridor que quer saber por que o sol se põe no começo da noite pode ficar bastante satisfeito quando lhe dizem que ele está indo descansar durante a noite, e mesmo o trovão e o relâmpago são menos insuportáveis se nos falarem dos raios de Júpiter ou das descargas elétricas (quase não importa qual) (GOMBRICH, 1999: 131).
O presente artigo tem o objetivo de entender como as peças teatrais produzidas durante o governo de Getúlio Vargas condensaram e resumiram sua atuação política, transformando e reconfigurando a forma como foi construída a imagem pública do presidente. Faremos um estudo, portanto, sobre a construção da figura pública a partir da análise das peças que contenham a imagem de Getúlio Vargas. Gostaríamos de verificar quais são as representações sociais que envolvem essa figura e qual é o papel do teatro enquanto mídia na construção dessas representações.
Utilizamos aqui o termo "representação social" conforme ele é descrito por Erving Goffman. Para este pesquisador, isto é, nada mais do que "toda atividade de um indivíduo que se passa num período caracterizado por sua presença contínua diante de um grupo particular de observadores e que tem sobre estes alguma influência" (GOFFMAN, 1985). É como se todas as pessoas estivessem o tempo todo representando um papel e este se tornasse "uma segunda natureza e parte integrante de nossa personalidade" (PARK citado em GOFFMAN, 1985: 27).
Quando essas representações - que são socialmente construídas, mas operam individualmente - ultrapassam a individualidade e passam a ser parte integrante dos produtos culturais, a questão se transforma. Isso porque, fugindo ao controle do representado, uma série de outras forças sociais também são transformadas em atores que recodificam estas representações. A condensação de uma situação complexa em uma imagem de fácil entendimento, portanto, envolve uma série de atores sociais, o que torna a questão mais complexa e, potencialmente, muito mais interessante.
Um dos atores envolvidos nesse processo é oferecido pela qualidade do corpus que será analisado: trata-se da censura. Isso porque o corpus de pesquisa é parte integrante do Arquivo Miroel Silveira, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e do Arquivo do Estado. Ele possui mais de seis mil processos de censura teatral que passaram pelo Departamento de Diversões Públicas do Estado de São Paulo, no período entre a década de 20 e a de 70. O trabalho desenvolvido pela autora está alocado dentro do eixo temático "O Poder e a Fala na Cena Paulista", sob orientação e coordenação da Prof. Dr. Mayra Rodrigues Gomes, que tem como foco de análise as palavras que foram vetadas. Através do levantamento histórico combinado com o levantamento semântico dos termos censurados, buscamos entender as motivações do censor em vetar determinadas expressões, em detrimento de tantas outras possíveis. Estima-se que, aproximadamente, 1.304 peças do arquivo sofreram cortes de palavras.
A metodologia utilizada diz respeito a um viés da análise do discurso, a saber, a "análise arqueológica do discurso". "Esta terminologia a vincula às idéias de Michel Foucault e também a um plano de análise que vai buscar na plataforma cultural, nas estratificações ou matrizes assentadas em determinado tempo e lugar, as razões de ser de uma significação especial das expressões e palavras vetadas" (GOMES, 2008).
Outro aporte teórico complementar à análise do discurso será fornecido pela teoria das implicitações de Oswald Ducrot, baseada nos conceitos de pressupostos e subentendidos. Um pressuposto diz respeito às condições lógicas de existência de um enunciado. Os subentendidos, por sua vez, remetem ao contexto de leitura por parte do espectador (GOMES, 2008).
Partimos do entendimento de que "os mecanismos conducentes à transformação de um modo em outro podem não ser exclusivamente internos ao modo, mas podem derivar da conjunção e interação de sociedades distintamente estruturadas. Nesse sentido, todo desenvolvimento é desenvolvimento misto" (Hobsbawn, 2005: 181). Por isso, as modificações na figura de Vargas no teatro não serão consideradas como unidades fechadas, mas sim, através de suas relações com outros produtos culturais.
As peças analisadas no presente artigo serão: "Aluga-se um cavanhaque", de Fernando Alves da Costa e Erastótenes Frazão (Dezembro de 1930); "Com Getúlio é na Batata", de Juracy Vianna (Novembro de 1930); "Corações Paulistas", de Adolpho Sampaio (Agosto de 1935); "Quem será o homem", de Raymundo Chaves e Belisário Couto (Novembro de 1936); e, por fim, "Amarga Realidade", de José Freire da Silva e Francisco Netto (Agosto de 1945).

Aluga-se um cavanhaque: Vargas como a alegoria do país

Se, em 1930, após a vitória da Aliança Liberal, Vargas dizia que "só pelas armas seria possível restituir a liberdade ao povo brasileiro e (...) arrancar a máscara de legalidade com que se rotulavam os maiores atentados à lei e à justiça" (VARGAS, 1938: 69-74), em "Aluga-se um cavanhaque", Liberdade e Legalidade são mais do que conceitos políticos: são personagens.
A Legalidade se personifica, visivelmente, em "um tipo perfeito de cocote, cheia de artifícios e vaidades". A Liberdade, o oposto da primeira, é "uma moça muito interessante e culta". Elas são figuras que desfilam a frente dos olhos do espectador e que agem segundo as regras de convivência do mundo social. O discurso de Vargas transcrito acima claramente hierarquiza o discurso da liberdade como muito superior ao da legalidade. Na peça, porém, somos levados muito além desse ponto: como espectadores, desejamos calorosamente que Liberdade ganhe o coração de Brasil.
A conjugação entre a personificação, a condensação e o entendimento esclarecedor pode ser observada em todas as passagens de "Aluga-se um cavanhaque". No personagem Brasil, porém, é onde essa relação se expressa da forma mais curiosa. Ele não assume a revolução como uma boa opção para se livrar de Legalidade imediatamente. Brasil é antes representado como cuidadoso, do que como tolo, pois, somente depois de muita consideração ele vê a Revolução como viável na busca do amor de Liberdade.
Uma primeira leitura revela só um enredo inocentemente construído com reviravoltas e intrigas comuns a inúmeras peças de teatro. Quando lembramos que a peça foi encenada pouco mais de um mês após a posse de Getulio Vargas no poder, porém, ela adquire novos significados.
Após perder a eleição, Vargas não assume a via revolucionária como uma opção. Ao contrário, por inúmeras vezes, chega a negá-la. Um editorial publicado em O Estado de São Paulo, por exemplo, elogia essa reação no candidato derrotado afirmando que Vargas seria "um modelo de prudência, de bom tom e de patriotismo. Nem o mais longínquo aceno a medidas violentas (...) dá bom exemplo na regeneração dos costumes políticos" (BORGES, 1979: 105).
A falta de definição das posições varguistas também eram pautas constantes em outros jornais de maneira menos elogiosa. O Diário Nacional, por exemplo, critica o "temperamento taciturno e indeciso do ilustre Sr. Getulio Vargas". O Correio Paulistano chega a inventar a expressão "getulice": "sinônimo confortável e lauto de falta de lógica, de tipo instável, de todas as coisas contraditórias, sem bases sólidas, sem limites fixos, sem pé nem cabeça, misturas que não se misturam..." (BORGES, 1979: 96). Isso tudo antes de sua posse à presidência.
Como justificar essa indecisão toda sem passar pela via do oportunismo e transformar Vargas no "grande reformador que, vencendo masculamente todos os tropeços, aí está para realizar serena, mas inflexivelmente a obra de reconstrução do país que a Revolução vitoriosa foi o primeiro e decisivo passo" (editorial publicado no Diário Nacional, apud BORGES, 1979: 117)? Ora, talvez não haja maneira mais eficiente de fazê-lo do que colocar essa idéia no jogo simbólico da esfera pública, em busca do monopólio da violência simbólica legítima.
A peça não cita, em nenhum momento, o nome de Vargas. Mas a aproximação da trajetória de Brasil na peça com a participação efetiva de Vargas na Revolução de 30 é tão clara que dificilmente passaria desapercebido para um espectador que assistisse a peça quando os acontecimentos descritos acima ainda estavam tão frescos na esfera pública.

A comemoração bem humorada da Revolução de 30 em "Com Getúlio é na Batata"

A relação estabelecida entre Getulio Vargas e as formas populares de arte era bastante dúbia. Ao mesmo tempo em que se censuravam os artistas, Vargas procurava dar mostras de simpatia por essas representações. A mesma ambiguidade também se expressa nas formas de financiamento e fomento da cultura popular. Se, por um lado, em "A Hora do Brasil", ao lado das realizações governamentais, tocava-se também música popular - como uma forma de aproximação menos ostensiva das massas por parte do governo - por outro, era muito difícil a obtenção de dinheiro governamental para atividades artísticas populares. Fato, porém, era que esse contingente de peças e músicas e charges, entre outros produtos culturais populares, que falaram sobre Getulio Vargas (concebidos de forma espontânea ou estimulada) foram fundamentais para a construção de sua imagem política.
Essa relação entre a arte popular e a política getulista já podia ser percebida desde a Revolução de 30. "Como decorrência do movimento revolucionário e das suas causas, mas também do que acontecia mais ou menos nos Estados Unidos, houve nos anos 30 uma espécie de convívio íntimo entre a literatura e as ideologias políticas e religiosas" (CÂNDIDO, 1989: 188). É nessa mesma época, também, que a cultura deixa de ser encarada como algo que deveria se confinar às esferas da aristocracia. Pelo menos em tese, o que incrivelmente já representava certo avanço, a cultura passou a ser vista como direito de todos.
A relação entre política e cultura nos anos 30, como enfatiza Lúcia Lippi de Oliveira, e que se desenvolveu plenamente durante o Estado Novo, estava relacionada ao fato de que a política era vista como uma espécie de imposição do social e, por esse motivo, exerceria uma hegemonia natural sobre o econômico ou o espiritual. A cultura, por sua vez, é vista como a expressão da vida popular, dando uma idéia à política, com isso, de quais seriam as aspirações verdadeiramente sociais.
Se acompanharmos a trajetória de Vargas pelos produtos culturais, perceberemos que ele começa a aparecer nos jornais paulistas e nacionais em 1927, quando se torna Ministro da Fazenda de Washington Luis. Nas músicas, ele começa a aparecer quando se iniciam as agitações relacionadas à sucessão presidencial, em torno de 1929/1930. A peça Com Getúlio é na Batata, de Juracy Vianna, é uma das primeiras manifestações teatrais em que Vargas aparece - dentro do Arquivo Miroel Silveira, é a peça mais recente que contém a figura do ex-presidente. A temática desse teatro de revista é justamente a revolução que o levou ao poder e a solicitação de censura da peça data de 08 de Novembro de 1930 - apenas cinco dias depois, portanto, de Getúlio ter assumido o governo provisório.
Nessa primeira manifestação teatral da figura de Getulio, curiosamente, já encontramos uma série de construções imagéticas que serão retomadas, posteriormente, por outros produtos culturais que tratavam de fatos da carreira do ex-presidente. Ela é claramente uma ode à Revolução de 30, comemorando, com humor leve, alguns fatos que a desencadearam, com uma interpretação própria. Uma das peculiaridades da apresentação é o fato de que os quadros não estão preocupados em explicitar os interesses ou conchavos políticos. Eles estão muito mais interessados em cantar as mágoas das camadas médias e populares relacionadas à República Velha - e, especialmente quanto a Washington Luis - demonstrando grande esperança em uma possibilidade de renovação. Com isso, ela contrasta da peça "Aluga-se um Cavanhaque",  produzida um mês depois, já que, através do uso de alegorias, Frazão e Costa estão mais preocupados com os bastidores políticos da revolução.
O primeiro quadro, por exemplo - chamado apenas de "scena primeira" - fala sobre Washington Luis. Entre outras coisas, a política econômica do último presidente oligarca é retratada, ironicamente, nos seguintes termos: "Noutras terras, câmbio baixo/ Duras leis, crise que espanta/ Neste país apetecido/ O câmbio sempre levanta".
Esses versos são uma referência à política financeira de Washington Luis do ano de 1926. Nesse período, de fato, a taxa de câmbio foi fixada em índices acima do mercado "com o objetivo de favorecer as exportações e proteger a indústria nacional. A decisão, porém, provocou forte reação negativa do comércio, prejudicado com o encarecimento das importações" (MAYER, 2008). Ora, as pessoas ligadas ao comércio interno, nessa época, apesar de figurarem entre os setores médios da sociedade, eram também consideradas como parte da "massa popular", por estarem excluídos das decisões políticas e relegados a um papel econômico menosprezado.
O que é mais interessante, porém, é que a orientação econômica do governo Washington Luis já havia se modificado há muito tempo. A polêmica em torno da economia se dava em outros termos em 1929/1930: "Washington Luís decidiu manter uma taxa fixa de câmbio para a moeda brasileira, fazendo com que a receita do setor exportador acompanhasse a violenta queda dos preços do café" (MAYER, 2008). Esse fato, porém, não é referido na peça. Ao contrário da política econômica de 1926, isso afetava muito mais os setores da oligarquia do que os setores médios e populares. A mágoa demonstrada pelo antigo câmbio alto e a falta de referências quanto às novas orientações econômicas são bons indícios de quais tipos de setores sociais a peça voltava sua atenção imediata.
Com Getúlio é na Batata também é muito mais personalista do que Aluga-se um cavanhaque. Enquanto esta se utiliza de alegorias para explicar os fatos, a primeira não tem pudores em louvar abertamente os homens-símbolos da Revolução de 30: Getulio Vargas, Juarez Távora, Miguel Costa e João Pessoa são tratados como heróis, como os homens que seriam responsáveis por livrar o Brasil da "tirania do cavanha" (referência a Washington Luís).
A personificação funciona como um legitimador do regime recém-instalado. Curiosamente, porém, é justamente esse ponto que a censura decide vetar. O censor determinou um corte na página 6 (na palavra "Baixignon Luís") e a modificação de todos os nomes próprios. Como bem colocam as pesquisadoras do eixo temático O Poder e a Fala na Cena Paulista:
Nesse intervalo, não é possível imaginar que o serviço de censura paulista já estivesse estruturado de acordo com os interesses do novo governo. (...) Essa providência revela que a instituição, por meio da descontextualização, pretendia instalar um distanciamento dos acontecimentos reais. A alteração dos nomes próprios dificultaria a associação com os eventos que, na peça, eram descritos humoristicamente, mas de modo a ressaltar as qualidades dos vitoriosos e a criticar o antigo governo. De qualquer modo, o efeito geral da ação censória se resume a evitar problemas com quaisquer dos personagens citados na peça, que eram nomes de peso da política derrotada e da política vitoriosa (GOMES, 2008).
Além da intervenção da censura na peça, outro ponto que gostaríamos de ressaltar é esse voto de confiança e esse apoio imediato que grandes setores urbanos (e populares, inclusive), parecem depositar nas propostas da Aliança Liberal e na figura de Getúlio Vargas. Isso pode ser atestado tanto nas primeiras peças teatrais que foram escritas sobre o tema, quanto quando observamos manifestações em outros produtos culturais. Segundo Francisco Weffort, a Aliança liberal "apresentava-se como um remanso acolhedor para todos os descontentamentos e todas as esperanças. O pobre, o milionário, o funcionário, o comunista, a feminista, todos podiam confiar na serenidade de ação do candidato por ela indicado" (RODRIGUES, 1965 apud WEFFORT, 2003: 74).

Corações Paulistas e Quem será o homem: Vargas quer continuar no poder

A marchinha vencedora do carnaval de 1937 cantava a seguinte estória (no ritmo da canção "Terezinha de Jesus"): "A menina presidência/ vai rifar seu coração/ E já tem três pretendentes/ Todos três chapéus nas mãos/ (E quem será?)?". Para responder a pergunta, o ritmo da música se intensifica "O homem quem será/ Será seu Manduca ou será seu Vavá?/ Entre esses dois meu coração balança porque/ na hora H quem vai ficar é seu Gegê!".
A composição de Antônio Nássara e Cristovão de Alencar, escrita antes do golpe do Estado Novo, brinca com as possibilidades de eleição dos dois prováveis candidatos que disputariam o pleito de 1938: Armando Salles de Oliveira (seu Manduca) e Oswaldo Aranha (seu Vavá). Como uma espécie de previsão do que estava por vir, a marchinha já adianta que quem vai ganhar o coração da menina presidência é, na verdade, um candidato que nem concorreria às eleições: Getulio Vargas. A música mostra como bem antes do Golpe que instalaria o Estado Novo no país, as suspeitas dos desejos de continuísmo varguista no poder já eram de conhecimento popular. Além dessa, muitas outras representações do período brincavam com os desejos continuístas de Vargas no poder através de músicas, piadas e charges.
No período em que a peças foram encenadas, o país viva um momento político delicado. Se por um lado, a Constituição de 1934 e a restituição da democracia no país (com o fim do governo provisório) marcam o fim de uma série de disputas que haviam se iniciado já em 30, por outro, uma série de medidas tomadas pelo governo ameaçavam essa restituição democrática e já deixavam entrever o radicalismo que dominaria o país nos anos seguintes. Portanto, ao mesmo tempo em que um dos pontos cruciais da política do período era manter a aura democrática, as medidas do governo e de alguns grupos radicais (como a ANL e a AIB), muitas vezes, se mostravam contraditórias a essa orientação.
Esse contexto político se projeta na ação da censura sobre a peça Corações Paulistas, de Adolpho Sampaio. Sua censura se deu em Agosto de 1935, somente quatro meses, portanto, depois da promulgação da Lei de Segurança Nacional (04 de Abril de 1935). A peça é um drama em torno de uma família que luta na revolução de 1932. Por trás do melodrama, a peça é completamente marcada pelo imaginário heróico da luta constitucionalista. Em um determinado ponto da peça, a palavra "Getúlio" é proibida pela censura no trecho: "Thereza: Graças a Deus que a Revolução acabou! / Pedro: é verdade. Tinha que acabar mesmo. Eles não podiam comigo. O Getúlio enviou-me um telegrama dizendo - chega! Entrego os pontos! És um bicho!" No trecho transcrito, a censura ordenou que a palavra "Getúlio" fosse substituída por "Catete".
Como já pudemos constatar pela nossa pesquisa até o momento, era bastante comum o veto da censura à nomes de pessoas conhecidas e influentes na esfera pública que aparecessem em peças teatrais (especialmente quando elas eram tratadas de forma grosseira). Essa orientação constava mesmo nos manuais que regiam o trabalho do censor. Isso por si só, talvez já fosse um motivo mais do que suficiente para que se desse o corte ao nome de Getulio Vargas. Mas nem sempre os censores respeitavam estritamente essa regra. Isso se torna ainda mais interessante no caso de Vargas, já que provavelmente ele foi o político que mais apareceu em peças teatrais. Por isso, mesmo que seja possível que o corte tenha se dado somente pelo fato de o censor querer respeitar essa regra, investigaremos outros fatores que podem ter influenciado na sua decisão.
O fato de o pano de fundo da peça ser a Revolução de 1932 parece ser um dos determinantes desse comportamento. Ora, a peça seria encenada apenas três anos após o confronto, no Teatro Municipal da cidade de São Paulo. O lugar e o tema eram suficientes para despertar nos telespectadores sentimentos um tanto fortes: a rememoração do que tinha, afinal de contas, originado o conflito e do que o confronto havia custado para suas vidas. Apesar de ser um consenso entre os historiadores de que o conflito foi motivado pelo inconformismo da oligarquia paulista em ter perdido grande parte de sua representação no poder central, a tônica propagandística da revolução foi construída em outros termos: eram os temas da autonomia, da constitucionalização do país e da superioridade de São Paulo frente a outras regiões que moviam os "corações paulistas". "O rádio - utilizado pela primeira vez em larga escala no país -, a imprensa, os oradores inflamados contribuíram para avolumar o ódio contra Getúlio, o execrável Gegê, ditador que pisoteara São Paulo com as botas militares e traíra os ideais democráticos" (FAUSTO, 2006: 63).
A censura de "Corações Paulistas" se deu em Agosto de 1935. Ainda não havia acontecido, portanto, o fato que daria respaldo ao estado de guerra e a justificação necessária para um uso mais intenso de instrumentos autoritários: a Intentona Comunista (que se daria em Novembro). O medo do comunismo ainda não havia encontrado um ato suficientemente concreto para invadir de forma forte o imaginário da população. Era necessário, portanto, manter a aura democrática, apesar de diversos instrumentos autoritários já estarem em ação. Mesmo após a Intentona (e até o início do Estado Novo), o governo ainda teve alguns cuidados para não ser identificado com uma ditadura ou com ações muito radicais na esfera pública. Em 1936, por exemplo, quando o governo foi acusado de maus tratos para com os prisioneiros, Vargas, contra todas as evidências, dizia que:
Posso afirmar-vos que, até agora, todos os detidos são tratados com benignidade, atitude essa contrastante com os processos de violência que eles apregoam e sistematicamente praticam. Esse procedimento magnânimo não traduz fraqueza. Pelo contrário, é próprio dos fortes, que nunca se amesquinham na luta e sabem manter, com igual inteireza, o destemor e o sentimento de justiça humana (FAUSTO, 2006: 78)
E é em nome da manutenção da fachada democrática que o censor pode ter considerado oportuno o corte do nome de Getulio. No caso de Corações Paulistas, a rememoração do confronto de 32 apenas 3 anos depois de seu término (com o conseqüente despertar de sentimentos em pessoas que haviam participado da luta por uma Constituição) associada a um período histórico em que os ideais democráticos estavam sendo deixados de lado, era uma mistura perigosa. Substituir o nome de Vargas por "Catete", portanto, teria o objetivo de manter a aura democrática, utilizando expressões que lhe são próprias. A palavra "catete" iria evitar que se configurasse a metonímia do autoritarismo: um homem tomado como todo um governo.
Para Francisco Weffort, "a importância das formas democráticas está em que legalizam, embora de maneira restrita, a possibilidade de que as insatisfações populares alcancem, com certa autonomia, o poder e interfiram em uma condição tão politicamente passiva como a que se observa no período da ditadura" (WEFFORT, 2003:16). E era exatamente isso que estava em jogo com a substituição da palavra "Vargas" pela palavra "catete" em Corações Paulistas: manter a sensação de uma participação democrática, enquanto os direitos civis iam, paulatinamente, sofrendo reduções drásticas.
A interpretação de que o corte do nome de Getúlio não tenha sido feita simplesmente por se tratar de um nome próprio encontra respaldo se a compararmos com a atuação da censura em Quem Será o Homem. Embora esse teatro de revista possua uma cena em que Vargas mostra claramente querer continuar no poder indefinidamente, a cena não é cortada.
Se compararmos as intervenções em Corações Paulistas e em Quem será o homem? teremos alguns indícios de um fato sobre a atuação da censura que já havia sido apontado por alguns artistas teatrais, como Mário Lago. Segundo ele, em entrevista concedida a Roseli Paulino (2001: 75-87), "podíamos criticar a pessoa Getúlio Vargas, mas não podíamos criticar o sistema Getúlio Vargas". Lago conta uma experiência própria:
Estreei uma peça em que fazia um quadro que era o malandro querendo ensinar um golpe para o Getúlio. Toda aquela linguagem de malandro. E dizia para o Getúlio: `Agora vou lhe ensinar um que não falha nunca'. E Getúlio dava uma rasteira no malandro. `O senhor já sabia, sua Excelência?'. E o personagem do Getúlio respondia: `Faço isso desde criança, meu filho'. Isto passou pela censura. No entanto, na história havia uma família que atravessava a peça toda. O chefe da família tinha sido demitido. E foi para a Justiça do Trabalho. Esta família fazia várias entradas, e o tempo ia passando e eles iam envelhecendo e estavam sempre entrando com recurso na Justiça. Isso não passou. Porque criticava as leis trabalhistas, a Consolidação das Leis do Trabalho. A censura era fundamentalmente neste aspecto. Você podia interpretar o Getúlio passando uma rasteira, mas não podia interpretar uma família que estava dependendo de uma solução da Justiça, que não saía porque o patrão estava sempre recorrendo (LAGO apud PAULINO, 2001: 75-87).
Parece que esse mesmo esquema de pensamento está envolvido na censura das duas peças. Em Quem Será o Homem, trata-se apenas de um Getúlio Vargas malandro, esperto, algo direcionado para o presidente enquanto pessoa. Vargas é colocado em meio a todo um sistema político construído ao seu redor, confirmado através da presença de outros nomes políticos aparecendo ao seu lado na peça. Mesmo que ele lhes dê uma rasteira, é como se ele jogasse com o sistema político, mas jamais questionasse a existência desse sistema.
Já em Corações Paulistas, quando Vargas é colocado não somente como o centro das decisões, mas sim como a única fonte delas, trata-se de outro problema: nega-se, com isso, a existência própria de um sistema político estruturado democraticamente. Daí a necessidade de se apagar a metonímia do autoritarismo, daí a necessidade de corte de todos os vestígios de sua presença.
Em uma época de double-bind democrático, você pode brincar com o sistema político, mas, em momento algum, é permitido que você o liquide. Não sem uma razão muito forte. Uma razão que seria encontrada nos meses que se seguiriam, mas que, naquele momento, deveria ser colocada em panos quentes.

Superando as diferenças em nome de ser brasileiro: peça amarga realidade

De acordo com Francisco Weffort, desde a década de 30, as massas populares passaram a representar, de certa forma, o "parceiro-fantasma" das relações políticas brasileiras. Era em nome delas que os políticos diziam estar agindo, mantendo-as, ao mesmo tempo, longe do processo político - numa espécie de tentativa de barganha em torno da "interpretação legítima dos interesses populares" (WEFFORT, 2003: 13). E é por isso que em todas as crises "a intervenção do povo apareceu como possibilidade, mas o jogo dos parceiros reais consistiu em avaliar, tacitamente, a importância desta intervenção e em blefar sobre este cálculo". O autor vai ainda mais além e afirma que o medo do fantasma popular foi tão intenso que "em país algum ter-se-á observado uma tão ansiosa busca de compromisso, até entre os grupos políticos mais antagônicos, que evitasse a radicalização do processo político e seu encaminhamento para soluções surpreendentes" (WEFFORT, 2003: 13).
Desde o final dos anos 20, as massas já apareciam na esfera pública relevante como um ator que deveria ser levado à sério. É o caso, por exemplo, dos editoriais do Diário Nacional que criticavam o fato de que "no Brasil os direitos do operariado ficam sempre no segundo plano, (...) não tem sequer o direito de abrir a boca para protestar" ou diziam que "o poder público atira cada vez mais o proletariado para as esquerdas". O jornal O Estado de São Paulo também percebe isso no mesmo período e "parece dar-se conta das modificações existentes, que trazem um novo parceiro para a luta política: uma `massa', ou `as massas', ou as `forças populares', não definidas pelo jornal" (BORGES, 1979: 126).
Mas ao mesmo tempo em que essa massa passa a integrar a pauta da esfera pública relevante, ela começa também a ser vista como um elemento que necessita de uma tutela. Como explicita Borges, a respeito de O ESP, "ora, o projeto elitista do jornal precisa de alguém que imprima uma direção a essa `massa"' (BORGES, 1979:126). Curiosamente, já em 1929, o jornal já apontava Vargas como um provável tutor dos desesperançados.
Obviamente, durante esse período a imagem do político-tutor era toda concentrada na figura de Vargas, era ele o responsável por imprimir às massas uma direção. Mesmo nos demais níveis de poder, "a consolidação do Estado Novo exigiu a construção de um corpo burocrático, militar e político subserviente a Vargas e desligado dos arroubos revolucionários dos primeiros anos. Eram necessários `quadros' formados à imagem e semelhança do próprio Vargas" (Nosso Século, 1980: 183).
Essa imagem do político-tutor era muito bem combinada com outro tipo de imagem, essa voltada não para o político, mas sim para a massa: estamos falando de um tipo de nacionalismo que via o povo como uma unidade, a partir da idéia mítica de "povo-comunidade", apagando, com isso, os conflitos internos inerentes à prática política:
Importa (...) observar que nesta ilusão de pura comunidade do povo não há, nem pode haver, contradições antagônicas entre as classes. O povo é percebido essencialmente como um conglomerado de indivíduos que comungam este puro sentimento de `ser brasileiro'. (...) Desnecessário dizer que aí está a justificativa ideológica da prática nacionalista orientada pela busca constante do compromisso e pela preocupação de evitar a todo custo as situações de conflito (WEFFORT, 2003: 39).
Nessa conjuntura o político ideal deveria ser o "sintetizador dos interesses coletivos, harmonizador e pacificador dos interesses de cada membro que compõe a nação brasileira" (JAMBEIRO et alli, 2003). Em "Amarga Realidade", é exatamente esse mito de união e aplainamento das diferenças que é evocado. Em uma cena, a bandeira do Brasil se desdobra sobre as fotos dos dois candidatos que disputariam o pleito eleitoral de 1945 (Eduardo Gomes e Eurico Gaspar Dutra) e sobre a foto de Getulio Vargas. Nessa apoteótica cena que encerra o segundo ato, fica bem claro o ideal de povo: uma grande comunidade onde as lutas políticas e a agitação eleitoral não seriam capazes, de maneira alguma, de obscurecer o grande sentimento de "ser brasileiro" e "pertencer a uma nação".

Considerações finais

Para entendermos como foi construída a imagem de Getúlio Vargas no teatro brasileiro, a partir do corpus proposto, precisamos delimitar algumas variáveis. A primeira observação pertinente se refere à natureza dessas peças. Como parece ter ficado evidente, como a maior parte do acervo do arquivo Miroel Silveira, estamos falando sobre obras que não fazem parte da grande cena teatral: são apresentações populares, oriundas do teatro de revista, circos teatros ou de grupos amadores. São peças que, de certa forma, atendiam mais uma camada baixa e/ou média da população, do que propriamente uma elite.
A temática do teatro popular é tão presente dentro do arquivo, que existe todo um eixo temático dedicado exclusivamente ao estudo do teatro amador. Era uma época em que o teatro não era uma coisa destinada somente a membros de uma elite. Existia uma série de lugares onde os baixos preços funcionavam como chamariz para as classes populares. Daí a importância que:
o teatro amador possuía até a década de 70 na vida cotidiana dos habitantes da cidade de São Paulo das mais diversas origens e atividades. Crianças, artistas e educadores utilizavam e enxergavam o teatro por ângulos diferentes, mas a catarse e ao mesmo tempo a utilidade proporcionadas por essa atividade ocupavam lugar de destaque no dia-a-dia destas pessoas. A configuração tomada pelo mapa, com um centro abarrotado e locais ultrapassando as barreiras impostas pela locomoção precária da época, demonstra a efervescência e também esta importância visceral que mencionamos. O teatro estava por toda parte, servindo aos mais diversos interesses e provocando o mesmo arrebatamento em seus realizadores e observadores (YACUBIAN, 2007: 12-13).
Como bem coloca Paula Montero, sãs as classes populares a matéria prima para a construção das nacionalidades nos Estados. "Com efeito, embora esse tipo de estrutura burocrática se inaugure no campo jurídico e da política, é no campo da cultura que ele ganha espessura" (MONTERO, 1999: 03). O fato de que as peças analisadas foram produzidas e tiveram como público alvo basicamente setores mais populares e médios da sociedade nos interessa na medida em que nos deparamos com a segunda questão que pode ser auferida das análises: a constatação de que, em muitas dessas peças, a imagem construída sobre a figura de Getúlio Vargas ou sobre os ideais da nação se aproximam, diretamente, dos discursos oficiais.
Só para relembrarmos alguns tópicos, estamos nos referindo, por exemplo, à celebração da Revolução de 30 feita pela peça Com Getúlio é na Batata, que se utiliza do recurso de comemorar os feitos de seus principais líderes como forma de legitimar o regime recém-instalado. Poderíamos citar também o apagamento de interesses políticos conflitantes entre as camadas sociais realizada em Amarga Realidade.
Cabe aqui também relembrar que peças como as analisadas nesse trabalho dificilmente receberiam algum tipo de incentivo financeiro estatal ou uma atenção especial por parte do governo. Retirando-se a possível interferência da censura - e aqui estamos nos referindo à possibilidade de autocensura que, de qualquer forma, dificilmente consegue ser empiricamente provada - estamos trabalhando com discursos produzidos espontaneamente por seus autores.
Como explicar, então, essa identidade entre o discurso oficial e o discurso veiculado por essas peças? Acreditamos que a resposta para essa pergunta só pode ser obtida se analisarmos o processo de formação dessas classes populares. É nesse ponto que está a resposta sobre por que houve a adoção de um comportamento populista das massas populares no período de 1930 a 1964. E é aí que acreditamos estar também a resposta do por que as produções culturais dessas massas refletiam esse comportamento.
Para entendermos essa formação, precisamos retomar um tema caro à sociologia: como se deu o processo de massificação no Brasil. Ora, assim como a emergência das massas políticas é um fenômeno iniciado na década de 30, a massificação brasileira também começa por essa época. O fato mais curioso que a envolve, entretanto, é que, diferentemente do processo de massificação europeu, a massificação brasileira foi prematura: não caracterizada pela quebra de uma consciência de classe (que, de qualquer forma, sequer se encontrava desenvolvida), mas por uma incorporação aos setores urbanos de amplos contingentes populacionais vindos do interior.
Outra particularidade desse processo é o de que, ao contrário de reduzir a consciência política, a massificação brasileira acabou por aumentá-la, já que a única possibilidade de participação política das massas rurais estava quando elas se incorporavam ao ambiente urbano, longe dos potentados rurais e do coronelismo.
Vivíamos no Brasil dessa época um processo intenso de urbanização e de modernização. As comunicações se expandiam rapidamente, a industrialização dava seus primeiros sinais de crescimento, os empregos urbanos cresciam cada vez mais e a vinda de imigrantes rurais disponibilizava um maior número de pessoas para a ação política. No momento em que as pessoas têm liberdade para aderir às idéias de um ou de outro líder - já que o contexto urbano em confronto com o ambiente rural propicia essa escolha - é que se concebe que elas estão nas condições efetivas desta disponibilidade política.
Mas isso não explica o problema todo. Uma vez em disponibilidade política, as pessoas poderiam aderir a qualquer tipo de liderança. As peculiaridades do processo de massificação brasileiro por si não explica por que justamente o populismo parece ter sido a forma política que caiu no agrado das massas, a ponto de seus líderes conseguirem refletir alguns de seus pontos de vista em produtos culturais produzidos espontaneamente. Analisaremos, então, algumas outras condições materiais em que essa formação das massas urbanas aconteceu.
Para Francisco Weffort, essa adesão das massas ao populismo pode ser explicada, em grande medida, pelo fato de que "o processo de formação das classes populares urbanas no Brasil se encontra marcado por um amplo processo de mobilidade social" (WEFFORT, 2003: 165). Em outras palavras, o autor explica que as massas urbanas mais importantes do ponto de vista político do período foram formadas mais por pessoas que haviam subido de posição social (como pessoas que haviam migrado do campo ou de cidades mais pobres ou a partir da transferência de pessoas até então pertencentes aos setores menos favorecidos) do que por pessoas que haviam entrado em decadência financeira.
A importância desse fator pode ser melhor percebida quando evocada a metáfora da Revolução Individual. Imprecisa como todo tipo de metáfora, ela nos ajuda, porém, a entender o que significava uma massa urbana formada por pessoas que, de certa forma, haviam melhorado suas condições de vida nos últimos anos:
Como tentativa para explicar o comportamento populista da classe operária industrial paulista, alguns intelectuais brasileiros dizem por vezes que o operário já realizou, ao migrar do campo para a cidade, uma `revolução individual' no seu estilo de vida, e por esta razão, prefere optar entre alternativas políticas abertas pelo grupo dominante, em vez de interessar-se em realizar ele próprio uma `segunda' revolução. Enfim, ele não se encontraria, pelo menos enquanto durem as condições que propiciaram sua formação como classe, entre aqueles que `nada têm a perder' (WEFFORT, 2003: 166).
O que está expresso nessas condições é o seguinte: para Weffort, as classes populares urbanas, formadas nessas condições, tendem a reconhecer e a legitimar os partidos e líderes ligados ao status quo que, embora não tenham saído das classes populares, conseguem dar voz e criar identificação com os interesses populares de melhores condições para a participação política e para a ascensão social. É como se essas pessoas identificassem no status quo quais são aqueles líderes que "se solidarizam e promovem as condições da ascensão" (WEFFORT, 2003: 176).
Os termos da contradição estão postos: as circunstâncias em que se formam as classes populares e que as conduzem a esta identidade são as mesmas que reafirmam, em vez de negar, seu caráter geral de classes sociais dominadas nos quadros do desenvolvimento de um sistema econômico e social baseado na desigualdade e na oposição de interesses entre as classes. O que se afirma, portanto, em circunstâncias históricas dadas, é uma ordem baseada na desigualdade social, para ser aceitável por alguns setores das classes dominadas (WEFFORT, 2003: 177).
É com base nessa formação popular que podemos entender por que certos discursos e imagens que conseguimos identificar nas peças analisadas se aproximam tanto do discurso oficial. Esse era de certa forma o reconhecido como o melhor por amplos setores populares. Nenhuma forma de dominação se mantém sem o reconhecimento por parte dos dominados da legitimidade dos mandatos. As peças são mais alguns documentos que atestam que existia uma boa dose dela no período.
A questão está longe de se esgotar por aqui. Notamos também nas peças uma série de contradições e escapadelas desse discurso oficial. Até mesmo isso parece estar relacionado com as características próprias de formação das classes populares urbanas. Estamos nos referindo ao fato de que a ascensão social a qual nos referimos não estava relacionada com uma maior flexibilidade das estruturas de classe. Em uma época de franca urbanização e crescimento acelerado de empregos, havia sim uma melhora de vida, mas essa não significava a ascensão para uma classe social mais elevada. Desta forma, "a satisfação que se associa à ascensão social de amplos setores populares urbanos tende a acompanhar-se da insatisfação característica das posições sociais alcançadas" (WEFFORT, 2003: 179).
Dessa forma, a formação contraditória dessas classes - "numa palavra, a vitória individual traz em germe uma frustração social" (WEFFORT, 2003: 183) - são também refletidas nos produtos culturais que pessoas oriundas dessa formação produzem. Eles conseguem aliar, contraditoriamente, uma identidade com o discurso oficial combinada com reclamações e reformulações desse.
Por fim, as contradições existentes dentro das imagens construídas nas peças (e que esperamos termos eficientemente elencado aqui) são também uma prova de que a dominação e manipulação populista nunca foram absolutas. O populismo foi de fato um período marcado pela manipulação da emotividade, mas foi também, uma forma de expressão das insatisfações populares. Talvez a primeira forma que encontrou corpo em um país com a formação do Brasil. Lado a lado, as peças demonstram quais são os alcances e os limites dessa manipulação e dessa expressão de insatisfações.

Referências Bibliográficas

BORGES, Vavy Pacheco. Getulio Vargas e a oligarquia paulista (história de uma esperança e muitos desenganos). São Paulo: Editora Brasiliense, 1979.
CÂNDIDO, Antônio. "A revolução de 1930 e a cultura". In CÂNDIDO, Antônio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Editora Ática, 1989.
 
FAUSTO, Boris. Getulio Vargas: o poder e o sorriso. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
 
GOFFMAN, Erving. A representação do Eu na vida cotidiana. Rio de Janeiro: Vozes, 1985.
 
GOMBRICH, Ernst Hans. Meditações sobre um cavalinho de pau e outros ensaios sobre a teoria da arte. Tradução de Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Edusp, 1999.
 
Grandes Figuras em Quadrinho. Getúlio Vargas: O Renovador. Texto: CARRAZZONI, André e PEIXOTO, Alzira Vargas do Amaral. Quadrinização dos textos: MIRANDA, Nair da Rocha. Desenhos do texto e das capas: LLAMPAYAS, Rámon. Rio de Janeiro: Ebal, 1960.
 
GOMES, Mayra Rodrigues. Palavras proibidas: pressupostos e subtendidos na censura teatral. São Paulo: 2008, no prelo. Colaboração de CASADEI, Eliza Bachega, KERI, Natália Favrin e CRUZ, Pollyanna Reis.
 
GOMES, Mayra Rodrigues. "Palavras Proibidas: um estudo da censura no teatro brasileiro". Revista Comunicação e Consumo, São Paulo, volume 02, número 05, páginas 241-264, Novembro de 2005.
 
HOBSBAWN, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia da Letras, 1998. Tradução Cid Knipel.
 
JAMBEIRO, Othon, SANTOS, Suzy dos, RIBEIRO, Andrea, MOTA, Amanda, COSTA, Eliana e BRITO, Fabiano. "Estratégias de controle da mídia: o caso da radiodifusão no Estado Novo". Volume V, Número 03, Setembro/ Dezembro de 2003.
 
LESSA, Orígenes. Getúlio Vargas na Literatura de Cordel. Rio de Janeiro: Editora Documentário, 1973.
 
MAYER, Jorge Miguel. "Luís, Washington". In Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro (DHBB). Coordenação de LATTMAN-WELTMAN, Fernando e ABREU, Alzira Alves de. Disponível em
www.cpdoc.fgv.br/dhbb/. Acesso em 05/02/2008.
 
MONTERO, Paula. "A cultura popular na fabricação da identidade nacional". Revista Notícias FAPESP, número 42, Maio de 1999.
 
Nosso Século. 1930/1945 - A Era Vargas. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
 
OLIVEIRA, Lúcia Lippi de. "As raízes da ordem: os intelectuais, a cultura e o Estado". In A Revolução de 30: seminário realizado pelo Centro de Pesquisa e documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas, em setembro de 1980. Rio de Janeiro: Editora da Universidade de Brasília, 1982.
 
PAULINO, Roseli Fígaro. "Um artista de verdade". Comunicação e Educação, São Paulo, número 22, páginas 73-87, Setembro/Dezembro de 2001.
 
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.
 
VARGAS, Getulio. A Nova Política do Brasil. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1938-1941.
 
YACUBIAN, Flávia Cristina. "A memória do cotidiano de São Paulo através do teatro". Anais do XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Santos, Agosto/Setembro de 2007.
 
WEFFORT, Francisco. O Populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.

Footnotes:

1Graduanda em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e Bolsista de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Desenvolve o trabalho junto ao projeto temático A Cena Paulista: um estudo da produção cultural de São Paulo a partir do Arquivo Miroel Silveira no eixo temático O Poder e a Fala na Cena Paulista , sob orientação da Profa. Dra. Mayra Rodrigues Gomes.